terça-feira, 29 de maio de 2012

O declínio do rei sol

O que é a atitude do ex-presidente Lula a não ser empáfia e falta de senso de medida? Não, ele não está sendo empurrado pelos efeitos da química que se submete para a cura da doença. Depois de décadas dominando uma agremiação na qual todos lhe rendem vassalagem, e somado aos oito anos em que conviveu com todo tipo de sanguessuga na forma de áulico, seria natural que Lula acreditasse que tudo pode. Deixou o poder com altíssimos índices de popularidade e jamais se conformou com o fato de que se tornou uma criaura das sombras. Aquela força solar que somente o poder confere a quem o veste se perdeu.

Mas Lula vem cometendo erros. O principal: não segurar seus cães numa ofensiva contra a Veja, na CPI do Cachoeira. Ao eleger a revista como inimiga e instigar partidos e aliados a verberar contra relações inexistentes entre a publicação e o bandido goiano, o ex-presidente ultrapassou o limite da prudência.

Até então, o foco da Veja era José Dirceu. São inimigos figadais. Lula jamais tinha sido trazido para o centro do ringue. Claro que muitos dos ataques a Dirceu respingavam nele, mas o dano era periférico. Nos últimos tempos, o ex-presidente teve ainda a seu "favor" ter sido acometido de uma grave moléstia. Por questões estratégicas (afinal, não seria necessário angariar a antipatia geral e parecer injusta e implacável), a Veja recuou.

Lula, porém, voltou à arena. Primeiramente para eleger Fernando Haddad em São Paulo, ponto de honra para ele e para o PT. Em segundo lugar, porque todos no partido parecem demonstrar um desarvoramento geral, uma descoordenação completa. A vida segue, mas esbarra em Dilma, que já mostrou escutar mais sua intuição política do que os conselhos dos petistas que a cercam.

(Quem imaginou que colocaria cangalha na presidente deve estar lamentando.)

O passo seguinte foi atuar para enfraquecer o julgamento do mensalão. Por isso estimulou a CPI do Cachoeira, acreditando que acertaria de morte somente o governador Marconi Perillo. Desse saco de caranguejos vieram agarrados a Delta, Agnelo Queiroz e Sérgio Cabral Filho. Dano colateral previsível, sobretudo quando as gravações trouxeram o diretor para o Centro-Oeste da construtora.

Mas Lula continuou acelerando.

A CPI, formada, se vê hoje diante da desmoralização completa, que pode custar caro não apenas à imagem da instituição, mas aos próprios senadores, deputados e partidos que nela atuam. A primeira manifestação disso pode vir nas eleições municipais, termômetro para 2014. A comissão anda no fio da gilete, vigiada de perto pela imprensa, que a cada dia expõe manobras pusilânimes de figuras sórdidas.

Lula não pode dizer que a CPI era passeio. O próprio Romero Jucá, que apesar da falta de caráter inegavelmente conhece as manhas da política, foi um dos primeiros a avisar. E nem se diga que estava ressentido (embora estivesse) por ter perdido a liderança do governo.

Mas Lula continuou acelerando...

Com a vigilância cerrada da opinião pública e sob risco de desmoralizar-se e espalhar o prejuízo tanto pelos governistas quanto pelos oposicionistas, restava a Lula atuar naquela frente na qual acreditou ser a CPI remédio suficientemente forte contra o julgamento do mensalão. Novamente calçou meião e chuteira para ir a campo.


Com a aquiescência da cúpula do PT, sobretudo de Rui Falcão e José Dirceu, o ex-presidente deu início à série de conversas. Naturalmente que acreditava poder intimidar José Dias Toffoli, Ricardo Lewandowsky e Cármem Lúcia, hoje ministros do Supremo graças ao condão de Lula.

Com Joaquim Barbosa, também guindado ao STF durante seu governo, o ex-presidente já previa uma conversa mais árida e de resultado incalculável. Basta ver nas páginas da Veja as impressões que deu sobre o ministro. Pouco elogiosas; nada que o peso da sua presença não pudesse equilibrar pela via do constrangimento.

Mas Lula continuou acelerando!

Preferiu, então, começar por alguém que é classificado pelo PT como um inimigo a ser vencido: Gilmar Mendes. Figura polêmica e pouco querida, aceitou do amigo comum Nelson Jobim o arranjo do encontro. Que começou com amenidades até que chegou o momento de o ex-presidente dizer o real motivo daquela conversa. Lula, certo de que ainda é uma figura solar, introduziu o assunto do mensalão da pior forma possível, ao apontar que o julgamento, no atual momento, é inadequado.

Afoito, pensava poder jogar para depois da eleição a avaliação do caso.  "Depois da eleição" entenda-se empurrar com a barriga, pois, em 2013, alegaria que é véspera de 2014, ano eleitoral. E assim iria, de justificativa em justificativa.

Piorou tudo quando suspeitou que a ida de Gilmar à Alemanha, com Demóstenes Torres, tivesse ocorrido às expensas de Carlinhos Cachoeira. Lula prometeu ao ministro proteção na CPI. Proteção contra o quê? Sinal de que em algum momento o PT, ao longo do julgamento do mensalão, ia soltar os cachorros contra o ministro, não só para emparedá-lo, mas também para "melar" o trabalho da corte. E consolidar a ideia de que não somente o mensalão foi uma farsa montada "pelas elites" (seja lá o que isso signifique), como o caso está sendo crivado por juízes sem isenção e desonestos.

Quer dizer: Lula trabalha para cobrir o Supremo de vergonha e dúvidas em nome da defesa de uma quadrilha que assaltou sem dó os cofres públicos.

A crise é resultado da onipotência de Lula, não dos efeitos da quimioterapia ou da radioterapia. É fruto da arrogância, da certeza de que esse País é uma terra de leis complacentes e morais flácidas. Como o ex-presidente, que mede os acontecimentos pela própria régua.

Lula merce desprezo pelos lances de torpeza que protagonizou.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

O show tem que continuar

Cartaz do show deste sábado, em Birmingham
Vamos falar de música? Vom'bora, mas com uma polemicazinha para animar as coisas. Tal como essa que envolve Bill Ward, baterista original do Black Sabbath, que está fora do disco e dos shows que Tony Iommi, Ozzy Osbourne e Geezer Butler vão fazer - o primeiro é neste sábado, na 02 Academy, em Birmingham, Inglaterra, cidade natal dos quatro.

Ward é um grande baterista? A resposta é: NÃO! É tecnicamente fraco, se comparado a um Ian Paice, um John Bonham, um Ted McKenna e alguns outros contemporâneos seus. Mas assentava-se maravilhosamente bem por causa da sonoridade até então incomum da banda.

Para piorar as coisas, Ward é alcoolatra. Enquanto se tem 20, 30 anos, isso pode parecer engraçado, mas quando se passa dos 40 o corpo começa a cobrar o preço pela vida de excessos. Claro que ele não era apenas beberrão. Inclua aí cocaína e maconha, e você terá o coquetel completo. Ozzy aguentou bem? Mais ou menos. Prova é que ele hoje parece completamente idiotizado ao falar.

(Vi o show dele em Brasília, ano passado. Para um cara que passou o que ele diz ter passado, tem uma forma física invejável. Mas, algumas vezes - talvez pelo calor que fazia no Nilson Nelson -, encostou no praticável onde estava montada a bateria e, fingindo brincar com a galera, descansou alguns segundos. Também li sua biografia. Impressionante a resistência que tem a substâncias tóxicas.)

Quem ouviu e viu o DVD de Reunion, lançado há alguns anos, percebe que Ward está em má forma. Se na juventude não era grande coisa, imagine com o peso da idade nas costas. Dos quatro, apesar de não se submeter a artifícios estéticos (como o cabelo retintamente preto dos outros três), é o que tem a aparência de já ter ultrapassado os 70 anos.

Não consigo destacar um disco em que posso dizer que Bill arrebentou. Para mim, há faixas em que ele se sai muito bem e outras nas quais faz o básico. Era o que a música pedia? Sim e não. O material do Sabbath vive sendo executado por outras bandas e o que faz diferença é justamente o trabalho da bateria. Ouçam, por exemplo, Speak of the Devil, do Ozzy. Certo é que um baterista fenomenal como Tommy Aldridge faz chover, mas outros caras muito bons já passaram pelas bandas dos quatro - pequena lista: Randy Castillo, Deen Castronovo, Bobby Rondinelli, Michael Bordin, Carmine Appice, Jim Copley, Eric Singer, Vinny Appice etc. - e conseguiam melhorar o que já era bom.

Bill: envelhecido e prejudicado pelos anos de excesso
Assim, quando Bill entrava em cena, a impressão que sempre tive era de que não apenas não conseguia seguir o pique dos demais, como ficava evidente que era o músico menos talentoso. Uma limitação que, ironicamente, não se manifesta no excelente When the Bough Breaks, um dos álbuns-solo de Ward, que sabiamente entrega a bateria para se dedicar ao vocal. E se sai muitíssimo bem, num disco sombrio, uma espécie de heavy Pink Floyd.

Então, se eu, que estou de longe, tenho essa impressão, era natural que os três percebessem a mesma coisa. No tiroteio entre Bill e o trio restante, ele se disse ofendido várias vezes pelas decisões tomadas por Tony, Geezer e Ozzy. A mais recente é a de que tocaria somente poucas músicas em algumas e escolhidas apresentações. Esse prêmio de consolação é próprio da camaradagem. Algo do tipo: "O cara não tem mais condições, mas, como é nosso irmão, vamos arranjar um jeito de não sacaneá-lo". Foi, creio, o que fizeram com Ward.

Quem vai levar a bateria (parece) é Tommy Clufetos, que vinha tocando com Ozzy. Por que não Vinny Appice? Pela razão óbvia de que ele é tão associado à imagem de Ronnie James Dio que, se entrasse, o que se veria nos palcos seria um híbrido do Black Sabbath com o Heaven & Hell. E como esses comebacks têm um quê de ridículo, a emenda sairia pior que o soneto.

Clufetos, porém, não vai entrar na banda, tal como Geoff Nichols jamais entrou desde que Tony arrastou o cadáver do Sabbath após as saídas de Ozzy e Dio - foi oficializado somente na época do Seventh Star; depois, voltou para o backstage. Situação ridícula a do músico que toca das coxias. Todos ouvem aquela cama dos teclados, mas não sabem de onde vem.

Assim, o Sabbath redivivo será somente 3/4 da banda original com mais um convidado. Tal como Jason Bonham tocou com o que sobrou do Led Zeppelin, há poucos anos.

Quanto a Bill, quisera que sua saúde o ajudasse a tocar com os demais ou sua voz estivesse em condições para a retomada da carreira-solo onde parou, na década de 90. Não o conheço pessoalmente, mas tudo que li sobre ele o coloca na lista dos caras afáveis, bons de convivência. Basta ver que, quando Tony e Geezer estava rompidos com Ozzy por causa da saída da banda, Ward foi o único que manteve contato com o vocalista. Tanto que no documentário Don't Blame Me, Bill é quem aparece prestando depoimento sobre o cantor e falando do relacionamento fraternal entre eles.

É pena ver que os herois da gente também têm seus maus dias e péssimos finais. Gostaria de ver Ward, apesar de pensar o que penso dele, em plena forma, levando o material clássico do Sabbath. Gostaria que não envelhecessem. Gostaria que os anos de abuso não pesassem sobre o corpo. Mas não dá.

The show must go on, diz o jargão. Time is money, diz outro. E Bill, pelo tanto de tempo que passou na vida artística, os conhece muito bem.
O baterista com um dos seus adereços prediletos - o copo

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Vozes, mãos, braços

Tomei um tapa na cara sem mesmo saber de onde viera. Ainda aturdido com a queda, percebi duas coisas: que a cabeça sangrava e que algo com um forte cheiro de pólvora me pressionava a fronte. A mão, grossa e cheia de calos, fez um exercício que contraria a física ao tentar puxar-me o corpo somente pela cabeça. A dor foi insuportável.

O olho esquerdo mal abria. O sangue, grosso como melaço, o cobria. O pouco que via, pois o óculos voara longe e se perdera, era um gradil. Um vulto amarronzado abria-me uma portinhola, por onde alguém berrava aos meus ouvidos que deveria passar. O arremate foi um violento empurrão no meio das costas por um pé. Certamente a camisa guardara a marca do sapato.

O cheiro dentro era insuportável. Não se via nada, a  não ser pequenas nesgas de luz que vinham das frestas na lateral daquele cofre. O ar era impossível respirar. Misturava suor com sangue, fezes e urina, e subia pela garganta, deixando um gosto ruim na boca. Comecei a socar a lataria. O cofre sacolejava. Foi quando vi que havia mais alguém naquela escuridão. Mas não falava, não reagia.

Perdi a noção do tempo. Passei a mão no pulso e nem senti que o relógio me fora retirado. Presente do pai, de formatura. Onde estava? Era em ouro rosa. O velho morrera meses antes. O cigarro o matou. Não tive como ir ao velório ou ao sepultamento. Chorei durante toda a noite no apartamento com os quatro colegas de faculdade. Alguém, no meio daquela agonia, sugeriu comprar uma garrafa de Royal Label para que enchesse a cara e dormisse. A amiga, porém, foi contra. Levou-me para o quarto e tentou me acalmar com carícias. No meio da noite, conseguimos.

Ouvi o estampido e me assustei. É a portinhola se abrindo. A claridade invade o cofre e me cega. Duas mãos, não se sabe se as mesmas, me puxam para fora com brutalidade. No arranco, piso sobre a outra pessoa, que apenas geme. Enfio a cabeça no alto da portinhola. Outra dor lancinante.

"Olha a cabeça, arrombado!", grita um dos braços.

"E o outro?", pergunta uma segunda voz.

"Deixa essa porra aí. Acho que tá morta".

Ouvi dos mais velhos que era preferível ser morto a cair. A casa tinha caído. Uma mão me guia pelo ombro e vai indicando o caminho. Tinha sido quem? Alguém de dentro? A mulher do médico que passava os dias em casa? O entregador da mercearia, que sempre que ia entregar compras ficava pescoçando para dentro do apartamento? O faxineiro que trabalhava vestido com a camisa do Botafogo?

Alguém deu o serviço. Os mais velhos diziam sempre que, se pudessem, faziam como os nazistas capturados: morderiam cápsulas de cianureto. Onde arranjar capsulas de cianureto? A ideia não era má.

"Olha o degrau. Outro..." Essa já era uma terceira voz. Ou seria uma quarta?

A mão continua no ombro, amigável. A luz, de repente, mudou. Passou para algo lusco-fusco, nem claro, nem escuro. Havia janelas (ou portas?) ao longe. Dava para ver pela claridade que lhes assumia o formato.

"Para. Senta aí." A mão me empurrou para baixo, fazendo-me abaixar. Apalpei a parede e percebi uma estutura de madeira. Um banco. A voz tomou-me uma das mãos. Algemou-me a um pedaço da lateral de onde sentara.

"Espera aí", ordenou a voz. E saiu. Ora, como se fosse possível fugir. O banco parecia de madeira maciça, sólido, pesado. Era liso e plano. Senti a textura do assento com a mão esquerda, que ficara livre. Era polido, macio, aveludado.

Alguém retorna. Não era a mesma voz.

"Levante-se!"

Como?

"Jair, tira essa porra dessa algema".

"Fica quieto". Era a mesma voz que me conduzira até ali. Passei a mão no pulso, que ficara marcado. A algema estava arrochada demais. A região estava meio dormente pela falta de circulação sanguínea.

"Entra". Era a segunda voz.

"Senta!"

Onde?

"Não tá vendo a cadeira, porra?", exasperou-se a segunda voz. "Você é cego?"

Sou, de certa forma. Tenho miopia acentuada. Na bordoada, na rua, meu óculos voou longe. Não estou enxergando coisa alguma.

"Melhor assim. Aqui você não precisa ver nada. Aqui o importante é falar".

Sentei-me na cadeira. Uma das pernas estava bamba. Tive medo de cair. Procurei fazer o menos possível de movimento para não correr o risco. Coloquei as mãos sobre as coxas, femininamente. Era uma forma de me equilibrar e não tomar um tombo.

Enxergava (ou melhor, via apenas vultos) somente com o olho direito. Não notei, mas ao lado, mais ao fundo, havia alguém. A voz que me conduzira cruzou a mesa quadrada que tinha em frente e sentou-se. A cadeira rangeu dolorosamente. O segundo vulto tinha uma respiração pesada. A voz abriu o que pareceu uma pasta, dessas de arquivo. Tirou duas folhas, que farfalharam.

Quando começou a ler, não havia dúvidas. Estava tudo ali. Nome, sobrenome, codinome, nome de amigos, codinome de amigos, funções, datas, horários, locais, fatos. Gelei. Conhecia todos, sabia de tudo, vivera ou ouvira boa parte daquilo que me era relatado.

"Isso aqui é um tribunal?" perguntei.

A pessoa que estava atrás levantou-se. Parecia ser enorme. Deu-me uma cutelada no trapézio. A dor subiu à cabeça e desceu. Entortei-me, passei a mão esquerda sobre o ombro tentando fazer sarar. Bobagem. A face, contrita, apertava os olhos que nada enxergavam. Tive vontade de chorar.

"Fale somente quando for pedido", disse a voz do outro lado da mesa. "Senão, a diversão vai começar aqui mesmo".

Falar o quê?

"O senhor confirma....", e começou. Não confirmo nada, não sei do que estão falando, não conheço, não vi, não sei de nada. Vocês estão cometendo um erro. Esse não sou eu.

"Ah, não?"

Nova cutelada. Dessa vez não ouvi o sujeito de trás se levantar. A negativa continuou. Perdi os sentidos. Difícil saber se foi um "telefone" ou um tapa no pé do ouvido. A cabeça zumbia. Acho que caí no chão. Mãos desconhecidas me levantaram. Um cheiro insuportável me invadiu o nariz.

Amônia.

Uma mão desconhecida abriu-me a pupila, jogando um facho de luz. Fez o mesmo com o olho esquerdo, inchado. Nessa hora doeu. Tive uma reação com a cabeça, querendo fugir da mão.

"Pode prosseguir. Mas acho que é fraco".

"Vai aguentar a operação?"

"Não sei. Vamos tentar".

A mesma ladainha recomeçou. Você é, você viu, você conhece, você estava... Não, jamais, em tempo algum.

"Se não falar por bem, vai por mal", disse a voz que vinha de trás, bem perto do ouvido. Emanava um hálito estranho... Café! Café naquilo ali?  Imaginei o cheiro do grão recém-moído, como aquele que comprava no armazém do Galdino. Um quilo dava para a semana. Era um café forte, gostoso. Galdino era um sujeito honesto. Nunca errava no peso. A balança estava sempre regulada. O cheiro do café impregnava a lojinha. Brincava com o gato que se deitava sobre a resma de papel para embrulho. Chiquinho.

"Se não falar por bem...", repetiu a voz em frente.

Falar o quê? Não tinha jeito de dedo-duro. Os mais velhos me ensinaram a fazer pouco caso de quem caía e abria a boca. Lembrava sempre daquela cena em O Assalto ao Trem Pagador, quando o primo de Tião Medonho é usado como isca pela polícia para pegá-lo. Quem era mesmo aquele ator, que fazia o primo? Não lembrava o nome. Mas, engraçado, achava que ele tinha cara de dedo-duro.

Dizia-se que Virgílio, quando caiu, deu todo o serviço. Difícil provar, mas tinha tudo a ver. Logo em seguida um monte de gente também caiu. Dora, Macedo, Guima, Guilherme, Tonico, Chaleira, Ronaldo, Ângelo... Dizia-se que Guima e Chaleira tinham morrido. Ninguém voltou a ser visto.

"Não tenho nada a dizer. Não sei porra nenhuma".

Pegaram-me pelos braços. Eram duas pessoas.

"Leva esse merda. Opera ele para ele ficar fino".

"Vai dar uma de machão, filho da puta? Vamos te comer o cu agora". Essa voz até então não se apresentara. Não, não era um prazer conhecê-la.

"Ih, mais um?", perguntou alguém que passou pelo trio, naquele caminho cinzento.

"Vamos tirar o cabaço dele", respondeu a mesma voz que não se apresentara. O outro, que segurava o braço esquerdo, não se manifestara.

À medida que iam avançando, a luz natural desaparecia. Um lance de escada, dois, três. Um deles tropeça e quase cai:

"Porra..."

Lâmpadas incandescentes no alto, amarelas, fracas. 15 watts, 20 se tanto. Fraquinhas. O corredor era longo. Uma porta, parecia de metal.

"Abre doutor, abre..."

"Mais um?"

"Mais um. Hemorróidas. Vai operar?"

"Trouxeram a papelada?"

"O Jair está trazendo".

"Tem que ser rápido. Hoje tenho compromisso."

"Nós também. Quero ficar nessa porra até tarde, não". Era a voz que segurou o braço direito.

"Olha aí, chegou. Tira a roupa dele?"

"Pra quê, vai com roupa mesmo. O Tavares está lá em cima? Se estiver, ô Jair, diz para ele descer. Não quero que esse filho da puta desmaie no começo da operação".

"É, ele é meio fraco. Lá em cima já deu uma apagada..."

"Amarra ele. Fuma?"

Se eu fumava? Durante certo tempo... As mesmas perguntas.

"Vou começar de leve..." Abriu as pálpebras e enfiou o toco do cigarro.

Um tapa, dois. Senti que faltava algo dentro da boca. Foi depois de um soco. Baba de sangue escorria pelo peito.

"Levanta esse puto".

Afogamento. Uma, duas, três... sete, oito... A água fedia. Dei com o queixo na borda do tonel e mordi a língua. Vozes berravam no meu ouvido. Eram todas iguais. Estava surdo. Lá longe, ouvi o doutor dizer.

"Hoje não vai, mas amanhã ele canta. Leva. Tá dando minha hora".

Murmúrios de concordância.

Mãos me pegam pelo sovaco. Não me aguentava em pé. Senti um cheiro forte de fezes. Eu me cagara. Percebi ao sentir algo quente escorrendo pelas minhas pernas.

"Puta... Se cagou!", disse um.

"Que se foda. Vai dormir em cima da merda".

Eu tinha nojo de dedos-duros. Eram como o primo do Tião Medonho, no filme.

terça-feira, 15 de maio de 2012

O resultado do ridículo

Fui um dos primeiros jornalistas a entrevistar Fernando Collor depois que saiu de longo exílio imposto pela Justiça, por conta das traficâncias do esquema PC Farias, que o derrubou. Fui despido de simpatias (que não tenho) ou antipatias (que são imensas) por este personagem da pobre política nacional. Com Jorge Eduardo Antunes e João Carlos Rodrigues, mais Ricardo Marques pilotando a câmera, publiquei duas páginas no então respeitável e legível Jornal de Brasília. No domingo, em espaço e edição nobres.

Lembro especialmente de uma pergunta feita durante a entrevista: quem é esse novo Collor? O hoje senador pelo PTB de Alagoas filosofou. Disse ter aprendido e buscou dar outras provas de que melhorara graças a doses maciças de humildade, estudo e observação. E voltava à cena se somando à base do seu ex-figadal inimigo, o então presidente Lula.

Sobre isso, aliás, Collor disse não haver problemas. Quer dizer: mudara realmente. Avançara.

Isso, evidentemente, poderiam pensar os ingênuos.

Não mudou coisa alguma. E a prova disso está no noticiário. Gosta da imprensa quando lhe é a favor, tal como o episódio que descrevi. Quando é contra, move céus e terras. Sorte que os veículos sabem de quem se trata.

Ontem, fez discurso no Senado exigindo que a Veja e Policarpo Júnior se explicassem. Mais uma vez, desfiou um rol de leviandades, sobretudo quando afirmou que entre a revista e Carlinhos Cachoeira há uma relação umbilical. Não há. O que há é o ódio de Collor pela Veja, responsável pelo começo de sua derrocada ao abrir páginas para Pedro Collor.

E a publicação, no seu mais recente número, fez questão de mostrar que o hoje senador caiu porque contra ele havia uma fartura de provas de conivência com o notório PC Farias. A Veja mostrou que, se deu o primeiro tiro, o restante da imprensa tratou de retalhar o corpo presidencial.

Compreensível que Collor não perdoe a revista. Mas não é natural.

Na época em que começou a descer a ladeira, eu estava na Tribuna da Imprensa. Era editor de Política, embora isso, infelizmente, não queira dizer muita coisa. O jornal era Helio Fernandes, que não aceitava sugestões de ninguém. O chefe da Redação, um certo Paulo Branco, que assumia a forma do vaso que o continha - homem de convicções elásticas e amplas. Abaixo dele, Roberto Assaf - jornalista sério, que, como eu, sofria ao ver o caminho antinatural seguido pela publicação.

A Tribuna remava contra a maré. Helio insistia em ver um golpe em marcha para tirar do poder o primeiro presidente eleito depois da ditadura. Sua compreensão dos fatos encontrava eco somente em Leonel Brizola, então governador do Estado do Rio.

Mas embora enxergassem as coisas da mesma forma, separava-os o âmago da questão: Brizola acusava o Globo, a Abril, a Folha e o Estadão de se unirem, turbinados pela força da Rede Globo, e trabalharem para cassar Collor e dar o poder a Itamar Franco, o vice - a fim de torná-lo um fantoche; Helio compreendia quase da mesma forma, porém ombreara-se a Collor por estar sendo regiamente remunerado. Foi um período próspero para a Tribuna, que recebeu enxurradas de publicidade do governo federal, mesmo sem ter relevância alguma para tanto.

Helio várias vezes veio a Brasília. Em inúmeros fins de tarde o vi adentrar a redação, apressado, terno azul marinho bem cortado, na direção da sala de Paulo Branco. O resultado, eu e Assaf já podíamos prever: uma manchete delirante. O preto viraria branco (sem trocadilho), num imenso artigo que Helio mandava publicar na primeira página. Geralmente, uma versão enlouquecida dos fatos, uma interpretação muito própria das coisas.

Nada daquilo, claro, era pelo amor à manutenção do sistema democrático.

Lembro de uma série de entrevistas, que saía sempre às segundas, como forma de dar alguma credibilidade a um governo sem credibilidade alguma como o de Collor. Figuras vergonhosas passearam pela então nobre página 5, como Nei Maranhão e outros que participavam da tropa de choque. As entrevistas vinham prontas, mas, de vez em quando, tínhamos arroubos de independência. E pautávamos alguém para ser ouvido.

Foi quando dei a ideia de saber o que pensava o historiador Nélson Werneck Sodré. Homem de sólidas convicções esquerdistas, autor do clássico A História da Imprensa no Brasil, deu uma entrevista devastadora. Não deixou nada que se salvasse sobre Collor.

Quando vi, meus olhos se arregalaram. Levei a Assaf e, juntos, levamos a Paulo Branco. A resposta veio seca, ríspida, bem ao estilo:

"Corta essa merda, porra!"

Ou seja, censura. Falar em censura na redação da Tribuna, que Helio fazia questão de alardear que jamais se curvara aos mandos do generalato de anos antes... Era a piada pronta. E de péssimo gosto.

O que saiu foi um arremedo de entrevista. Fiz uma imensa ginástica para publicar "aquilo", com pontos apenas leves da crítica devastadora que fazia ao governo Collor. Me revoltou e revoltou ao repórter que a fizera. Que na segunda-feira, quando cheguei na redação, me disse:

"Fabio, vou avisar ao Nélson Werneck. Não quero ter nada com isso!"

"Beleza, avise sim. Nem eu quero ter coisa alguma."

Ele ligou para o historiador, que, claro, ficou indignado. Não vira a entrevista, mas como tinha o telefone de Helio, procurou-o. E até onde sei, passou-lhe uma descompostura.

Na sequência, dispara sala afora o sempre gentil e afável Paulo Branco.

"Fabio, quem foi o filho da puta que ligou para o Nélson? Ele encheu os ouvidos do Helio, que está puto e me deu um esporro! Vamos ter de publicar a porra da entrevista de novo, com as partes que ficaram fora! Puta que pariu! Caralho!"

Toda essa peculiar linguagem ecoou pela grande, mas pouco povoada, redação da Tribuna.

O repórter quis reponder ao "filho da puta" como fora classificado, mas consegui que ficasse quieto. O importante era que a entrevista sairia de novo.

Minutos depois, volta Paulo Branco:

"Fabio, põe só o que ficou de fora dessa porra! E mete um título assim: 'O pensamento de Nélson Werneck Sodré'."

Tentei ponderar até com alguma veemência, mas...

"Você gosta de trabalhar aqui? Então põe essa merda como mandei!"

Era o ridículo do ridículo. Um jornalismo ridículo, protagonizado por gente ridícula, que ridicularizava um jornal por causa de um presidente ridículo.

É esse, em suma, o senador e ex-presidente que pretende colocar a faca no peito da Veja.

Ridículo.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Vamos recomeçar do zero?

Volto ao assunto que envolve a revista Veja.

Acho que algumas coisas têm que ficar bem claras, sobretudo quando, maliciosamente, comparam o caso atual ao de Rupert Murdoch - e tacham até o Roberto Civita de ser o "nosso" Murdoch. A estupidez é uma das faces da má-fé, tal como acontece com essa conexão que tentam fazer com que seja verdadeira.

Não tenho procuração para defender Civita, mas sabe-se (e não é de hoje) que Murdoch usa de meios amorais e imorais para turbinar seus veículos. "Rup The Red" corrompeu, grampeou, chantageou... Não ele pessoalmente, mas fez do crime prática comum dos seus jornais. A quantidade de barbaridades que o News of the World ou o The Sun publicaram, e a quantidade de processos judiciais a que respondem e foram condenados, mostram que a conduta de Murdoch e seus diretores é duvidosa - para dizer o mínimo.

Civita não veste esse figurino. Não que faltem ações judiciais à Abril, mas não se sabe que esteja respondendo a algum processo no qual tenha sido enquadrado nos artigos mais graves do Código Penal. E ainda que estivesse, haveria de se analisar bem a questão para julgar, então, o peso de sua participação num eventual episódio. Não podemos passar a achar as pessoas culpadas até que se lhes prove a inocência.

Tal como querem fazer agora com o chefe de redação da Veja, Policarpo Júnior. Deixo claro: não o conheço; se entrar na sala em que trabalho e não me disserem que é, jamais saberia de quem se trata. Da mesma forma, ele não precisa da minha defesa.

Mas o fato de ter recebido e publicado informações de um vagabundo, de um marginal, não o descredencia nem o nivela por baixo. Já estive na condição de chefiar redações e editorias. Sempre que estava diante de uma boa informação, não tinha dúvidas: consultava o comando da publicação e a direção da casa. Argumentava e contra-argumentava. Uma vez dado o sinal verde, botava na rua.

Como Poliparpo deve ter feito, sempre me perguntei de onde vinham certos dados, números, documentos. Muitas vezes sabia, outras não. E jamais os considerei inválidos se expusessem um esquema, se desmontassem uma fraude, se colocassem a pique uma quadrilha. Atendiam a interesses obscuros? Na maior parte do tempo, sim. Mas, apesar disso, não estarão sendo o interesse e o bem público defendidos de um mal maior?

Disse no post anterior: quem faz parte da roubalheira geralmente é uma fonte excelente. E não há nada melhor para o jornalismo que um ex-amigo ou ex-sócio ressentido. Quem teve o mínimo de vivência numa redação sabe que esse é o jogo. E que informação boa geralmente emerge de caminhos escuros.

A cada dia se constata que Carlinhos Cachoeira estava no rumo de se tornar um dos homens mais poderosos do País. Vejam a lista:

1) tinha um senador no bolso;

2) tinha deputados no bolso;

3) tinha uma grande empreiteira como parceira;

4) tinha informantes na Polícia Federal;

5) tinha informantes na Controladoria-Geral da União;

6) tinha informantes no Tribunal de Contas da União;

7) tinha conexões com o gabinete do governador Marconi Perillo, por meio da ex-chefe de gabinete;

8) contribuía generosamente com campanhas políticas, da esquerda à direita;

9) tinha contatos estreitos com agências reguladoras;

10) tinha pretensões de colocar um ministro no Supremo Tribunal Federal;

11) tinha representantes nos órgãos de segurança e no judiciário...

Por que não teria conexões com a imprensa? Sobretudo, com o mais importante semanário do País? Ou alguém é ingênuo a ponto de acreditar que, para construir o poderoso rol acima, o contato com a Veja não fazia parte do plano de consolidação de objetivos? Derrubar alguém pelas páginas da revista tem o condão de aumentar exponencialmente o cacife de quem conseguiu tal feito.

Interessava a Cachoeira tornar-se intocável.

Pretendem colocar a Veja e seu chefe de sucursal no mesmo patamar de Demóstenes Torres. Com a seguinte diferença: contra o senador, há provas concretas, lúcidas, de que seu mandato estava a serviço não de Goiás, mas de um grupo criminoso que pretendia, entre outras coisas, se apossar do Estado. Há uma fartura de informações que seguem nessa direção.

E quanto à Veja? Há o que de concreto contra ela? Gravações de Cachoeira citando o nome do chefe da Redação? Pouco, pouquíssimo.

Que o bicheiro fez da revista parceira preferencial das suas manobras, se sabe...

Que a utilizava para atingir seus objetivos, também...

Que sabia que tudo aquilo que entregasse seria forte o suficiente para fazer um estrago monumental, nem se discute...

E que veículo de imprensa faria diferente do que fez a Veja?

Que jornal não publicaria imagens de figuras proeminentes do governo e do Legislativo fazendo romaria à suíte de José Dirceu, num hotel em Brasília?

Ninguém jamais disse que a Renata LoPrete tinha algum contato além do jornalístico com Roberto Jefferson, quando o ex-deputado resolveu detonar o escândalo do Mensalão. Não duvidaram da sua idoneidade, não assacaram contra sua moral, não colocaram em xeque sua capacidade. Tampouco ela foi chamada à CPI para dar explicações, como querem fazer com o Policarpo.

Se todo jornalista que tiver entre suas fontes um marginal, e que por conta disso passar a fazer revelações das mais estarrecedoras, for chamado a prestar depoimento, sujeitando-se à mais vil forma de intimidação - vamos mal.

Se quiserem entrar no debate sobre as relações fonte-repórter, mergulharemos numa discussão interminável e estéril.

Se quiserem rever as conexões da imprensa com o submundo do poder, teremos de recomeçar do zero.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Dias negros no jornalismo

Acompanho com atenção a briga Carta Capital-Veja-Globo-Record para chegar a uma fácil e simples conclusão: nenhum dos envolvidos tem autoridade para colocar o dedo na cara do outro. Por tudo o que fizeram no passado e fazem no presente, pelas ligações comerciais que têm, pelo ranço de ressentimento que os lados guardam mutuamente (e seus delfins fazem questão de botar a cabeça para fora, cada um verberando barbaridades do adversário), quem perde é a imprensa, o jornalismo, a reportagem, a opinião pública.

Recuso-me a falar em ética quando os dois times já mostraram que esse é um conceito parecido com o dos motores flex. Aliás, "ética" é uma palavrinha desmoralizada, que geralmente salga a boca de quem a profere.

Quando veículos de imprensa compram barulho de governos ou partidos, é sinal de que a isenção tornou-se uma farsa. O que vem a partir daí é produto da má-fé, da distorção, da angulação quase sempre caricata de um episódio. O jornalismo, no Brasil e lá fora, definitivamente não vive momentos felizes.

Uma coisa, porém, não se pode discutir: as melhores fontes são os bandidos, os vagabundos, os desonestos, os corruptos. Casos exemplares, nos quais bandos de marginais engravatados foram desbaratados, explodiram assim que figuras amorais abriram a boca. Inconfidências são sempre praticadas por comensais e serviçais.

Quero dizer que o delator é sempre um insatisfeito.

Já está provado que os honestos não são chamados a participar das crocodilagens que envolvem poder e dinheiro. Para ser quadrilheiro, tem que ter coragem. E não ter escrúpulos.

Conheço, sim, episódios nos quais jornalistas e fontes se tornaram sócias. Já estranhei alguns relacionamentos inúmeras vezes. Provar, porém, não consigo. Para isso, somente um inquérito seguido de processo seria possível. Já presenciei defesas apaixonadas que não custaram barato e que iam muito além de noticiar o fato em primeira mão. Já vi e já soube de muito "homem de imprensa" que trocou o respeito profissional por benefícios indiretos - até mesmo sexuais.

Mas volto a dizer: provar isso...

Claro que a relação fonte-repórter nem sempre chega a tal ponto. Aliás, tenho certeza de que na maioria das vezes não desce tão baixo. Só posso medir as coisas pela minha régua, pois meu âmbito de relacionamento profissional me levou a pessoas decentes, trabalhadores da notícia que fazem dela profissão de fé.

A partidarização do fato me assusta e me incomoda. Quem ler esse artigo poderá pensar: ficou no muro! NUNCA, DE FORMA ALGUMA! Tenho um lado muito claro, que não passa pela defesa de qualquer veículo, tampouco de agremiações ou governos. Estou do lado do jornalismo, gravemente aviltado por quem se diz seu defensor, mas que não tem envergadura para a tarefa.

(Aliás, nos últimos tempos, ficou provado que vestais guardam segredos inconfessáveis. O ainda senador Demóstenes Torres está aí para não me deixar mentir. Quem acompanhou sua trajetória estarreceu-se à vontade com o que viu, leu e ouviu sobre ele.)

A discussão, apesar dos atores de pouca credibilidade, está aberta, provocada pela polarização. Quero ver até que ponto realmente temos liberdade de imprensa e se essa liberdade está assentada em pilares sólidos - há quem queira trazer à tona a censura em forma de "regulação da mídia"; há quem deseje o escancaramento total para que as páginas sirvam de ringue de vale-tudo.

É tempo de avaliar relacionamentos profissionais. Os dias servem para estudar o quanto se precisa de veículos que sejam correia de transmissão de grupos, partidos, financiadores, personagens...

Antes que a imprensa não tenha mais jeito. E vire isso que se vê aí: um negócio dominado por quadrilhas.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Caiu na rede é peixe

Cabral brinca: a opinião pública não achou graça alguma
Alguém realmente ficou surpreso com as imagens do lauto jantar desfrutado por Sérgio Cabral e Sérgio Cortes ao lado de Fernando Cavendish, em endereço nobilíssimo de Paris? Eu pelo menos não fiquei. Já havia me chamado a atenção aquele acidente no qual parentes de um e de outro morreram e sobre o qual o governador escapou por sorte do destino.

Disse num post anterior que conheci Cabral no mesmo banco de faculdade, fazendo campanha para vereador com panfleto desenhado por Ziraldo, amigo da família desde a época em que seu pai escreveu no "Pasquim". Tempos depois, encontro-o em evento político no Museu do Primeiro Reinado, quando, ao ser recebido com um abraço efusivo, me confidenciou que estava noivando a "neta do Tancredo" (o Tancredo aqui é Tancredo Neves, futuro e fugaz presidente da República). Num evento de final de ano, no Alcaparras, eis que cruzo com ele no banheiro do restaurante: Sérgio já era deputado, talvez presidente da Alerj - minha memória não chega a tantas minúcias.

De um ponto a outro, se passaram uns 10 anos. Cabral jamais escondeu a ambição. Era natural que, com uma trajetória que inclui ter sido um jovem senador, cultivasse amizades. E que essas mesmas amizades não tivessem surgido pela capacidade de o hoje governador contar piadas sujas - se é que realmente tem tal habilidade.

Há anos ouço que Cabral amealhou um invejável patrimônio, com direito a casa com deck para barcos de porte em Angra dos Reis. Com os vencimentos que acumula, pode ser que seja possível tanta coisa. Mesmo assim, quem já viu a casa não prestaneja em dizer que se trata de um imóvel de milionário. Mas vá lá que ele tenha conseguido financiamento para obter algo tão suntuoso.
Cavendish é o terceiro a partir da esquerda. Todos irradiam prosperidade

Também estranho a quantidade de notas na imprensa que dizem das viagens que Cabral faz ao exterior, sobretudo a Paris. Li dezenas delas na coluna de Jorge Bastos Moreno, no Globo. De início achei brincadeira, mas hoje me dou conta de que tratava-se de verdade. O governador parece ter imensa afinidade com a Cidade Luz. Por conta dessa constância de idas à aprazível e elegante capital francesa, em tom de chacota dizia-se que Cabral é o governador de direito enquanto seu vice, Luiz Pezão, é o governador de fato.

(Sem querer parecer futriqueiro, do Charles de Gaulle para o aeroporto de Basileia-Freinburg-Mulhouse, já dentro de território suíço, bastam 45 minutos de voo em confortáveis jatos de porte médio da Air France. Digo isso porque já fiz essa viagem. A trabalho, registre-se.)

Chamou-me a atenção também quando, tempos atrás, época em que o governador viveu crise conjugal, o prefeito Eduardo Paz tivesse colocado à disposição de Cabral o apartamento do irmão, na fronteira de Copacabana com Ipanema. Não haveria qualquer estranheza não fosse um fato: Guilherme Paz é banqueiro em São Paulo. Era o caso de agradecer a gentileza e não aceitar. Por razões óbvias.

Discordo do mestre Elio Gaspari quando disse que as fotos de Cabral e seus companheiros de noite francesa sejam bregas, próprias dos novos ricos que se fartam em Paris gastando um dinheiro que suspeitamente conseguiram. Acho que não seriam nada de mais não fosse:

1) serem protagonizadas por administradores públicos;

2) estarem nelas incluídas empresários;

3) serem em Paris, cidade preferida dos novos e velhos endinheirados dos quatro cantos do planeta;

4) terem vindo à tona no momento em que se discute um caso de corrupção de proporções bíblicas, que abarca partidos e políticos do governo e da oposição.

Defendo a tese que o homem tem direito a descontrair, sobretudo depois de um lauto jantar regado certamente pelo mais distinto vinho. A brincadeira, o "joie de vivre", o prazer da companhia de amigos queridos - tudo isso faz parte das missões, oficiais ou não. Devem ser gostosíssimos a hospedagem no Bristol, os paparicos na Cartier ou na Maison Chanel, a noite no Lasserre ou no Alain Ducasse, um borgonha exclusivíssimo, Bentley para levar e trazer. Quem pode desfrutar de tudo isso exibe sorrisos de satisfação.

Os homens públicos, porém, devem manter a sobriedade e a discrição. Fosse eu e um grupo de amigos, não seria nada de mais. Talvez nos chamassem de deslumbrados, deslumbramento esse que um governador, secretários e empresários com negócios dentro do governo não podem se deixar aprisionar. O meio político é implacável e para cada amigo, há dois inimigos. Que vão fazer excelente uso da informação quando for a hora.

Cabral pode nem ter sido flagrado em delito. Só que, ligando as pontas - notas nos jornais, fotos, fatos -, certamente se deduz que tenha uma ligação com Fernando Cavendish que vai além da amizade e da afinidade pelo bem-viver. Ainda que saia desse turbilhão ileso, sua conduta como gestor público não recomenda a recondução para cargo algum. Isso, claro, se o bom-senso e a memória prevalecerem.

As fotos e os vídeos são de 2009, mas a imprudência (ou a arrogância alimentada pela certeza de que podia fazer o que quisesse?) de Cabral fez com que viessem à tona agora. Momento de uma CPI que investiga o amigo Cavendish e sua empresa, e também quando o governador está empenhado na recondução do parceiro Eduardo Paz à Prefeitura do Rio.

Cabral abriu o flanco que faltava, dentro do seu partido e no Estado do Rio, para que seus adversários/inimigos reduzam sua importância. E se sua credibilidade não era das maiores, agora tende a murchar. Por mais que quem o ataque não mereça o respeito da opinião pública.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Nada mais que a obrigação

Cláudio talvez tenha tomado uma das poucas atitudes dignas da vida
O ex-delegado do DOPS Cláudio Guerra disse aquilo que há muito se sabia, mas que os militares insistem em afirmar que não foi bem assim. Durante a ditadura, casernas e delegacias mantiveram estreito contato, em nome da proteção do Estado contra uma ameaça comunista na qual nem eles mesmos acreditavam.

O dito "comunismo" servia de pretexto para a formação de uma rede de criminalidade e de exploração política que era preciso que fosse mantida. Nos altos gabinetes sabia-se perfeitamente que aquela roda fazia fortuna. E que não podia ser parada.

Os oficiais generais bradavam o perigo esquerdista enquanto, na parte de baixo, formava-se a corrente de políticos com acesso às benesses dos governos, protegidos pelos aparatos policiais legais e ilegais.

Mas para essa máquina funcionar, e o dinheiro continuar jorrando para toda a cadeia alimentar, era preciso matar. Do bandido ao militante, era preciso faxinar. A diferença é que o marginal, geralmente de família pobre, não tinha quem reclamasse seu corpo. De antemão, sabia-se que seu fim era morte ou cadeia.

O militante, não. Por trás contava com uma série de contatos que era sua única proteção. Se caísse e não voltasse, a mensagem fora passada. Estava morto. Restava à família solicitar os despojos ao governo.

Matava-se por diversão, por esporte, por perversidade. Tal liberdade era dada pelos governos, em seus três níveis. Como o ex-delegado deixa evidente, não havia código de ética, qualquer conduta valia.

Matava-se para possuir a mulher do próximo, por que não por mero e macabro deleite? O preso está ali mesmo, subjugado. Naquele momento, as trevas para os assassinos pareciam eternas, a ponto de lhes encobrir os atos hediondos

Lembro de dois episódios particularmente interessantes: um público, outro privado.

O público: o desaparecimento de Luiz Jatobá Filho com seu colega, Misaque José Marques. Sumiram na Região Oceânica de Niterói. Não tinham nada a ver com militância política, mas com criminalidade pura e simples. Luiz Jatobá pai, locutor dos primórdios da TV, foi várias vezes para a frente da câmera fazer pedidos patéticos sobre informação de seu filho. Sabia, como jornalista, que não o encontraria vivo. Queria somente o corpo para dar ao filho (e, por extensão, o mesmo direito à família de Misaque) um fim de alguma dignidade.

Os dois jamais voltaram. Por trás estava, segundo se comentou na época, uma partida de drogas tomada junto a um grande banqueiro de bicho do Rio e que não foi paga. Quem o assassinou? Policiais civis e militares que eram sócios do bicheiro não somente nas bancas de jogo, mas na distribuição de cocaína e maconha nos morros niteroienses. Um se tornou sócio-braço-direito de outro "capo" do bicho, dono de vários pontos em Niterói e ex-capitão do Exército - igualmente apontado como um dos mais prolíficos torturadores dos quarteis cariocas.

Não sobraram restos mortais porque, reza a lenda, os cadáveres foram dissolvidos numa banheira de ácido muriático.

Outro episódio aconteceu com meu pai. O apartamento vizinho ao dele, onde mora até hoje, passou anos fechado. Um sábado, mudou-se para lá um coronel-PM que deu um "open house" para inaugurar o novo lar. Como forma de socializar-se, chamou meu pai para uma dose de uísque, ingenuamente aceita.

Menos de 10 minutos depois, meu pai estava de volta em casa:

"Mas já?", disse minha mãe.

Meu velho estava incomodado. Voltara com o semblante pesado, franzido. A festa estava cheia de militares, tanto da PM, quanto das Forças Armadas.

"O fulano (o tal coronel, cujo nome sinceramente não lembro e que felizmente morou ali por somente algumas semanas) estava dizendo que na noite anterior tinha 'queimado' (literalmente? Ou é a gíria da bandidagem, que significa matar?) uns garotos..."

O uísque desceu com o peso de um paralelepípedo.

Não dá, portanto, para dizer que os militares não instalaram um regime de terror do País, tampouco acreditar que eles souberam de tudo depois, na redemocratização. É uma mentira grosseira, torpe. Sabiam de tudo e incentivavam o "guarda da esquina" (como vaticinou Pedro Aleixo) a fazer o que quisesse. A autoridade virou uma carteirinha falsificada.

O mesmo homem que torturava, servia-se da prostituição, do tráfico de drogas e de armas, da venda de facilidades no Detran,  do sistema de despachantes nos tribunais e cartórios. Começava pagando dízimo a alguém (um general, um juiz, um desembargador, o governador, o prefeito...) até que criasse suas próprias conexões.  Formava-se a trama dentro da trama. Todo prejuízo corria por conta do cidadão-contribuinte-eleitor.

O livro do ex-delegado do DOPS é um monumento ao surgimento paulatino da verdade. Quero lê-lo o quanto antes. Provavelmente não cita nomes para cima. Assume e purga suas culpas, localiza personagens mortos ou de menor importância. Tem, porém, o condão de revelar o envolvimento maciço do governo com os assassinatos em nome da segurança nacional.

O ex-delegado cumpriu o papel sempre desprezível de mostrar a nojeira na qual chafurdou. Não é o caso de considerá-lo um heroi, de perdoá-lo. Jamais será. Não se deve também vê-lo com mais ou menos dignidade.

Não fez mais que a obrigação.