quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Justiça fajuta é de esquadrão da morte

Não pretendo cometer crimes, nem mesmo o menor deles. Mas de alguma forma me deixa tranquilo em saber que há juízes em Nuremberg, ops!, Brasília, mais precisamente no Supremo Tribunal Federal. E antes que digam que estou entrando no clima de Flamengo x Vasco que se criou entre aqueles que estão contra e os que estão a favor dos mensaleiros, me antecipo: minha única preocupação é com a Justiça. Embora sobre ela não seja especialista.

Depois que o ministro deixou clara a decisão que tomara, um clima de arquibancada de torcida organizada tomou conta da imprensa, sobretudo na net. Li tristes diatribes de gente que queria que Mello votasse não segundo preceitos jurídicos, mas conforme convicções de quem escrevia tais críticas. Assim como li lamentáveis deboches daqueles que aproveitaram a oportunidade para enfiar o dedo na cara de quem pretendia que o decano não aceitasse os embargos.

Justiça pode ser tudo, menos apaixonada. Ainda mais no Brasil, cujos códigos têm brechas propositais para que, por elas, escape alguém. Parando para observar melhor, o voto de Mello foi exatamente o fechamento de uma dessas fendas.

Houve quem se precipitasse e dissesse que, com dinheiro, tudo se consegue na Justiça. Essa é uma verdade menos verdadeira do que se pensa. As jurisprudências servem para balizar sobretudo o andar de baixo.

O sistema judiciário brasileiro não é implacável somente com pretos e pobres, como gostam de dizer. Costuma ser implacável com todo aquele que é julgado açodadamente, sobretudo quando a opinião pública forma a culpa e entende que o resultado na corte não pode ser diferente daquele que exige. Ora, isso é típico de regimes de exceção, quando se injustiça (ou se faz justiçamento, que não representa justiça) em nome da sociedade.

Joaquim Barbosa, o Batman, perdeu? Ricardo Lewandowski ganhou? Não consigo ver as coisas assim, de forma maniqueísta. Elegeu-se que um representava o lado luminoso e o outro o lado negro da força. Bobagens próprias de um país com uma visão distorcida de Justiça. No regime militar, o que mais havia na lei eram dispositivos que atentavam contra os direitos fundamentais. E não se diga que foram inventados pelos juristas da ditadura. Alguns vinham de antes mesmo da ditadura Vargas - e outros tantos ainda permanecem!

Não é somente a Justiça brasileira que representa uma elite cultural e financeira, é a do mundo todo. Os sistemas são arquitetados e executados pelo andar de cima, eterno tutor da plebe e suposto conhecedor dos problemas sociais. Claro que tudo isso é injusto, mas ainda não surgiu um sistema melhor de elaboração de princípios e normas. Quem se apresentou como alternativa a ele não conseguiu nada além de uma miserável, uma mesquinha ditadura.

Também não vim até aqui para dizer que não desejo o encarceramento dos mensaleiros. Desejo desde que paguem o que é certo, nem mais, nem menos. Custo a entender como podem desejar a injustiça, como se isso não se voltasse contra a própria sociedade. Ou alguém tem a ingenuidade de acreditar que uma justiça cavalar será menos brutal contra simples mortais?

(Ainda que não seja somente uma questão jurídica, trata-se de lei da física: quanto maior é a altura até o chão, maior é a energia desprendida - ou seja, mais pesado fica um corpo.)

Entendo, por outro lado, a desesperança que embute uma decisão como a do ministro. Fica, sim, um hálito desagradável. Longe de ser uma Poliana, o STF é uma das mais qualificadas casas de leis que existem, e não apenas no Brasil. Todos os ministros foram severamente atacados por críticos e defensores dos mensaleiros - da capacidade técnica à sexualidade, nenhum dos 11 escapou. Foram devidamente enxovalhados por figuras que se autoproclamam democratas, defensoras da transparência. Alguns se ridicularizaram a tal ponto de, sendo jornalistas, contestarem os votos dos integrantes da corte, como se tivessem o "reconhecido saber jurídico" que um integrante do Supremo deve apresentar no currículo.

Do outro lado, os debochados truculentos tinham frouxos de risos com as diatribes dos "juristas" que não têm compromisso com a Justiça, mas que, diariamente, ferem a responsabilidade de se emitir uma opinião. A turma que milita neste extremo oposto não se importa em demonstrar falta de conhecimento e incapacidade de argumentar.

Seja como for, se Justiça lenta é falha, Justiça rápida também. Mas ainda prefiro uma Justiça atenta, e que siga em linha reta, do que uma Justiça que ignore princípios, deixe suas regras de lado, influencie-se pelo palpitismo ou se deixe pressionar pela ignorância erudita.

E para terminar: lembrem-se que o julgamento do mensalão vai correr boa parte de um ano eleitoral. Do ponto de vista das urnas, o voto do ministro pode ter desacorrentado forças indomáveis, com potencial para causar imensos danos ao PT e ao governo.






sexta-feira, 21 de junho de 2013

Questão de rapidez

Da última vez que escrevi aqui, tinha observado minha lástima com o fôlego curto que os protestos que têm varrido o Brasil podem ter. A razão disso é que a pauta de reivindicações dispersa demais. Querem de tudo, numa clara alusão ao descrédito que a rapaziada nutre pelas instituições. Esse, para mim, deveria ser o mote.

Não somente pelos poderes da República, mas pelas ONGs oportunistas, partidos malandros, dinheiro mal gasto, associações políticas espúrias e impunidade. Se alguém disser que quer rediscutir as instituições brasileiras, hoje rendidas ao mais rasteiro e pragmático oportunismo, acho que chegaremos a algum lugar. E acho também que passarão a levar a gravíssima situação social a sério.

(A única coisa que tem sido tratada como um aterrador sintoma de esgarçamento é a violência na qual as marchas sempre descambam. De pouco resolve mandar sentar no chão para identificar baderneiros e vagabundos, assim como nada resolve os jornais televisivos insistirem em expressões como "manifestação pacífica" ou "minoria de vândalos". Enquanto as coisas não tiverem objetivo, foco, se verá o povo na rua protestando não se sabe exatamente contra o quê e um expressivo grupo de marginais saqueando, roubando e destruindo.)

Os governos, sobretudo estaduais e municipais, estão atônitos porque não têm qualquer compromisso com o que "a voz rouca das ruas" (como disse um certo ex-presidente) está dizendo. A não ser pela pressão da turma das passagens de ônibus, ainda não se viu um movimento dos gestores na direção dos manifestantes na tentativa de compreendê-los. Não há interlocutores, nem de um lado, nem de outro.

As marchas só pararão quando o palácio, qualquer palácio, for ao encontro da turma para perguntar: "Me digam o que vocês querem?" Pode ser o palácio do governo, o do legislativo ou o do judiciário. As instituições, uma vez desacreditadas, devem mostrar ao menos que sabem ouvir e que têm disposição para o diálogo e para a resolução dos problemas. Somente dessa forma se recupera a credibilidade.

O governo federal erra, e  crassamente, quando se reúne sozinho com ministros para tentar compreender que crise é essa. Ora, essa crise engloba ainda o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. A falta de fé na Câmara e no Senado, cuja boa parcela dos integrantes não justifica a existência das duas casas, e nos 13 integrantes do STF, cujo excesso de legalismo por vezes se choca com os anseios da sociedade sem que para isso haja uma discussão que a inclua, não pode excluí-los das discussões. Afinal, se os três poderes são complementares entre si, devem buscar juntos a solução do problema.

Será de uma imensa burrice se os poderes esperarem que surja um líder que represente a massa. Não aparecerá. Mas isso não impede que se peça uma trégua, se façam lideranças e, a partir daí, iniciem-se as negociações. Mesmo porque o momento é ótimo, já que partidos políticos não conseguem se aproveitar da situação e, assim, guiar as manifestações conforme seus interesses. A cúpula que emergir desses protestos tem tudo para ser uma representante legítima do desejo coletivo por melhorias e bem-estar.

Os poderes só não são lentos na hora de servirem a si mesmos. Esse é um dos motivos da indignação popular. A saída, me parece, é ser mais esperto e veloz no entendimento da insatisfações. Sob pena de os indignados deixarem as ruas e ficarem somente os bandidos que têm depredado o patrimônio público.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

O inverno da minha desesperança


Li há pouco um texto que tinha tudo para ser lúcido, não terminasse fazendo uma intransigente defesa do governo – e que, por malandragem, deixa implícitos elogios também ao período Lula. Concordo com o autor somente que os protestos que temos visto nos últimos dias correm um sério risco de dar em nada, que daqui a mais uma semana (será?) as coisas voltam àquela normalidade a que tristemente já nos acostumamos: corrupção sem qualquer punição, justiça generosa para quem está no andar de cima, classe política totalmente desconectada daquilo que a sociedade quer e deseja... Não vou nem sequer entrar nas recentes questões econômicas (baixo crescimento, pouca competitividade, carga escorchante de impostos, inflação ladeira acima) para não abrir assim tanto o leque.


Queria muito que essas manifestações, para mim atos de uma população que está de saco cheio e pede mudanças – mesmo! –, continuassem indefinidamente. Queria que o país realmente parasse, que governos e políticos se sentissem emparedados e que a justiça se fizesse justa. É a única forma que vejo para as coisas acontecerem. Porque, se dentro de mais alguns dias todos voltarem para casa, os cínicos, os maus, os trapaceiros, os calhordas terão ganhado.

Ganhado e, pior, consolidado a certeza de que a população que esperneia é a mesma que cansa rápido. Aliás, corrigindo: essa certeza já têm. Daí porque a fé na impunidade e na ignorância que tão cuidadosamente professam – para os outros, não para eles.

Copa, transporte público precário, saúde vergonhosa, educação de fancaria... Escolha um mote para protestar? Temos! Nada disso é recente e, para meu desapontamento, vai continuar assim que a onda quebrar na praia.

Não me lembro de ter visto, aqui em Brasília, onde vivo e trabalho, uma única e recente manifestação contra os nojentos ônibus que servem à população. Sou residente da cidade desde 2007 e não me recordo de um só coletivo depredado em protesto contra o mau atendimento.

Quer dizer, o pau podia ter quebrado antes. Adiantaria? Quem sabe?

Nenhum desses argumentos para os protestos é novo. O copo transbordou? Não sei, tenho dúvidas. De repente, Brasil na final da Copa das Confederações contra a Espanha dá um baile de bola e no dia seguinte a indignação se foi. Ou melhor, voltou para o congelador.

Não que a seleção tenha culpa de coisa alguma ou que as copas, das Confederações e do Mundo, sejam um mal em si mesmas. Isso é burrice. Mas nenhum dos dois torneios foi escolhido ontem. Faz tempo que estão marcados. E já se sabia que as obras nos estádios e de mobilidade urbana fariam muita gente ter frouxos de riso com o dinheiro que faria. Aprovaram até mesmo um Regime Diferenciado de Contratação para que não houvesse contratempo nas licitações.

O RDC passou ruidosamente pelo Congresso, foi sancionado e... Deram de ombros!

Vá lá que os otimistas digam que primeiro vêm os sintomas para que a doença exploda. Tudo o que veio antes serviu para ir enchendo o saco até que arrebentasse. Bem, não creio nisso. Não é razoável acreditar que, em plena era da internet, em que se sabe de tudo (ainda que se discuta a veracidade e a precisão de muitas informações que circulam), ninguém tivesse percebido nada. Ou que apenas eu tenha visto.

O que eu fiz, hão de perguntar? Dei minha opinião, franca, desagradável e aberta, por onde quer que fosse. Mais do que isso é impossível fazer. Jamais me imolaria em praça pública, tal como os monges budistas fizeram em Saigon, na Guerra do Vietnã. Meu holocausto não faria a causa andar mais rápido e ainda haveria quem me chamasse de estúpido. E seria, de fato, uma estupidez que somente renderia fotos nas primeiras páginas, dando-me uma celebridade indesejada.

Assim, exceto pelo vandalismo – difícil purgar vagabundos e marginais quando se está falando de milhares de pessoas nas ruas –, apoio rigorosamente tudo o que tem sido feito, protestado, gritado, mostrado. Mas lastimo que isso não vá muito longe e que até o final do ano não se fale mais em passeata alguma, que as indignações voltem a dormir sono profundo e que todos estejam rendidos ao cotidiano massacrante e injusto.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Se não morreu ninguém, tudo OK

Essa piada ouvi há alguns anos, mas ilustra com perfeição a polícia brasileira. Segue.

Especialistas reuniram algumas das principais polícias do mundo para uma competição de eficiência. O teste era, dentro da mata, capturar um coelho que seria solto pelo organizadores no menor espaço de tempo possível.

A primeira foi a Scotland Yard. 15 minutos depois, traz o coelho. Em seguida, o FBI - recorde de 14m45. A Sureté bateu a marca em seguida, com o bicho preso pelas orelhas em 14m30. Seguiu a corrida, com cada uma fazendo o tempo mais baixo.

Por último, ficou a PM carioca. A marca era difícil: trazer o coelho em menos de 15 segundos. Os caras caíram dentro da mata. Dez segundos depois, voltam com um mendigo debaixo de porrada. O cara gritava:

"Tá certo, porra, eu sou um coelho!"

Manifestação, no Brasil, tem tudo para acabar em confusão, violência e abuso. Do outro lado, uma polícia que espanca, tortura e mata, em qualquer circunstância. Que a ação ontem em algumas capitais do País não são dignas de uma polícia bem preparada, isso já se sabe. O que se pergunta é: quando as PMs serão realmente bem preparadas?

Respondo: nunca, jamais, em tempo algum! A própria corporação não deseja romper com padrões e modernizar-se no tratamento de situação extremas. É da cultura interna, é das academias de formação de oficiais e de praças. Todos têm ali a certeza mais absoluta de que certas crises só são resolvidas distribuindo cacetadas indistintamente.

(Não vou entrar no mérito da manifestação. Acho R$ 3,00 de passagem de ônibus um valor escorchante e que R$ 0,20 de aumento pesam, sim, no bolso, no final do mês. Quem anda de transporte coletivo sabe que de pouquinho em pouquinho, o assalariado de mais baixa renda gasta muito com transporte. Ah!, existe o vale, que é dado pelo patrão. Vírgula, amigos. Se o cara precisar pegar um ônibus para ir sempre ao mercado, à casa da mãe num domingo e coisa parecida, vai ter que bancar a ida ao trabalho no restante do mês.

Mas essa é outra história. Voltemos à polícia.)

Se fizerem um histórico das manifestações, verão que sempre terminam mal. Primeiro, porque a população, de uma forma geral, tem ódio da polícia. A despreza, considera-a corrupta, violenta e covarde. Não sem razão.

Em segundo, porque a polícia não é enxergada como um instrumento de respeito ao estado e de preservação da ordem. É um elemento de opressão, nada mais. Culpa dessa imagem junto ao cidadão? Ora, ela mesma.

É só fazer um levantamento sobre casos gratuitos de violência policial, cuja punição se perde de vista. Não, não é apenas a imprensa que deixa que certos episódios desapareçam, mas é a corporação que também não dá satisfações dos seus atos. Não conheço uma única polícia, PM, Civil ou Federal, que venha a público purgar seus pecados.

Se não dá satisfações à sociedade, como obter respeito e compreensão? Impossível. É uma caixa preta que se auto-protege. E que quando aparece, é para colocar o cidadão contra a parede e dar-lhe surras de cassetete nos rins.

Pode o governador, o prefeito, dizer o que quiser. A polícia não muda, nem vai mudar. Primeiro, porque não quer (nova mentalidade pode parecer frouxidão); segundo, porque não pode (para o opositor, a polícia violenta de hoje pode ser o amparo político de amanhã); terceiro, porque não sabe (como toda corporação fechada e avessa a arejamentos, busca soluções dentro de si mesma; em geral, soluções que já fracassaram).

Esses episódios das passagens de ônibus que terminam em pancadaria não será o último, sobretudo porque ninguém morreu e morte não foi filmada. Se isso acontecer, pode ser que mude algo - ainda assim a percepção será limitada. Mas se isso acontecer com frequência, pode ser que realmente se evolua.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Assim regride a humanidade

Têm expressões que considero muito estúpidas. Mas uma está entre as cinco mais: mídia conservadora. Gostaria de saber quando a mídia, nesse caso a imprensa, foi progressista. Hélio Fernandes pode não ser autor citável, mas cansou-se de me dizer uma frase que considero lapidar: "Desde que Gutemberg inventou os tipos móveis, acabou-se a liberdade de imprensa".

A imprensa jamais foi progressista. Sempre foi conservadora, e isso é por definição. Todo e qualquer instrumento de poder é conservador. Exércitos são conservadores, assim como cleros, parlamentos. Representam um estamento, no conceito weberiano de que significa uma teia de relacionamentos que constitui um poder e influi num campo de atividade.

Não se pode dizer que a Tribuna da Imprensa dos tempos de Carlos Lacerda, que era oposição ao governo Vargas, era progressista. Tampouco que a Última Hora de Samuel Weiner, que era a favor do até bem pouco tempo antes caudilho, era conservadora. Uma era contra, outra a favor do governo. Ponto.

O Estadão não reconhece o período em que ficou sob intervenção, no Estado Novo. Ou pelo menos não reconhecia, pois fazia questão de ressaltar o hiato no expediente, relativo ao período em que Julio Mesquita foi afastado do comando do jornal por artes e manhas de Lourival Fontes. Hoje, o Estadão é considerado primor do conservadorismo. Jornalístico e social.

Tudo depende dos olhos de quem vê. Inventaram até mesmo um certo Partido da Imprensa Golpista. Como assim? Imprensa, progressista, então é o Granma pelo simples fato de que é o órgão oficial do Partido Comunista Cubano. Ou o Libération, francês. Então, é de esquerda, é progressista?

Esse maniqueísmo político unido à desonestidade intelectual é cansativo. Para mim, parece que quanto tempo mais faço jornalismo, mais vejo o pensamento andar para trás. Me dá uma desesperança, um pessimismo horroroso, se continuarmos discutindo as coisas dessa maneira.

Hão de dizer que sou conservador, depois de lerem o pouco que escrevi aqui. Se fosse, não tinha problema. Mas não sou. Quando lembro de figuras como Roberto Cardozo Alves, de José Lourenço, de Inocêncio de Oliveira, entristeço. Exceto pelo homem dos poços artesianos no sertão pernambucano - que serviu a vários senhores e servirá a quantos mais vierem -, os dois primeiros eram convictos direitistas, empedernidos conservadores.

O que veio depois disso é melhor? É progressista?

Reaça! - certamente gritarão. "Bouche fermée, colabó" - rebato eu.


quarta-feira, 8 de maio de 2013

O troco do poder econômico

Considero o Facebook a nova maravilha da humanidade. Acho sensacional tanta gente opinando, concordando e discordando. E gosto mais ainda daqueles que são professorais, que escrevem verdadeiros tratados sociológicos e filosóficos. Não, não é deboche da minha parte, apesar de alguns textos nitidamente irônicos. Ironia, aliás, é arma de têmpera divina, como disse Agripino Grieco. Quem? Ora, deixa pra lá.
 
O ataque da Polícia Civil mostrado pelo "Fantástico", domingo, a um traficantão, é o assunto do momento. Todos, claro, têm suas teorias. Mas, de todas as que li, a que segue abaixo (em vermelho) foi a que gostei mais. (Omito o nome do autor por ser ele um jornalista, de um grande veículo do Rio de Janeiro e não me autorizou a colocá-la aqui neste espaço - embora o Face seja um local público.) Digo a razão depois. Vejam-na. 
 
O DESENHO QUE APRENDI COM O MATEMÁTICO

Vou fazer um desenho aqui muito melhor do que a matéria do Fantástico, já que muita gente viu, mas não entendeu nada do que viu. Serei – ou tentarei ser – mais didático.

Sabe por que deve-se evitar ao máximo matar bandidinho? Porque tem muito policialzinho amiguinho de bandidinho. Mas é muito. Muito. São quase a mesma coisa. A diferença é o contracheque e a farda (ou distintivo). E que um às vezes está em helicóptero e às vezes na viela.
...

É policialzinho que vende o fuzilzinho para o bandidinho. É policialzinho que vende cocaína para o bandidinho. E quando o bandidinho se anima e tenta criar asinhas, o policialzinho vai lá e mata aquele bandidinho porque criar asinha não estava no combinado. E coloca outro bandidinho igualzinho em seu lugar, com asa mais curtinha. E todo mundo continua ganhando o dinheirinho. E a criminalidade não diminui.

Por isso, o mais legalzinho é que o BOM policial PRENDA o bandidinho para que o bandidinho NOS CONTE quem são os policiaisinhos que trabalham com eles neste comerciozinho que não é só de cocaína, de crack, essas coisas que (buuuuu), assustam nossas criancinhas.

Tem policialzinho amigo de bandidinho que não vende pó, mas vende gás de cozinha, vende água, coisas fundamentais para a vida numa favela. Que vende TV a cabo. E mata adoidado quem não pagar no fim do mês. Imagina ir na lotérica, no asfalto, pagar a conta da Light, ver que o dinheiro acabou e levar um tiro do dono da lotérica, que é policial. Bacana, né?

Ih, acontece parecido lá, sabia? Não, não sabia? Pooooooooooooooooxa. Procure saber. Por isso, volto a dizer, o bandidinho tem que ser PRESO para ajudar o BOM policial (sim, eles existem) a encontrar o BANDIDÃO.

Esse bandidão nem sempre tem cara de mau, nem sempre é preto e mora em favela. Esse bandidão costuma morar bem, frequentar palácios e parlamentos, delegacias e quartéis.

A gente sabe que esse bandidinho com fuzil causa repulsa. Sim, causa. Normal que cause. Mas para que ele exista cada vez menos, a saída não é mata-lo. Quanto mais matar bandidinho, mais difícil será de pegar o bandidão, que continuará fabricando bandidinhos e mais bandidinhos. E mais bandidinhos, e mais bandidinhos. Entendeu?

O matemático que me ensinou isso foi meu pai, que dedicou 40 anos de sua vida a lecionar matemática, história, geografia e filosofia num negócio que existia no Brasil chamado escola pública, gratuita e de qualidade.

P.s: não é tão difícil de entender, vai. Isso não tem NADA A VER com defender bandido. MUITO PELO CONTRÁRIO. Larga o Playstation um pouquinho, vai.
 
Bem, tudo certo. Por este prisma, toda operação policial visa abater algum bandido que não serve mais ao "sistema" (já ouvi essa expressão em algum lugar... Lembrei! Num blockbuster do cinema nacional!). O autor do texto acima, nos comentários que se seguiram, continuou esgrimindo e tratando com, digamos, certo desprezo - sim, a ironia é uma forma de desprezo -, quem dele discorda. Um gesto pouco cavalheiresco, mas permitido.
 
O autor do texto garante que bandido pé de chinelo entrega bandidão e policial corrupto. Para ele, o pé de chinelo deve sempre ser preso para que possa dar o nome de quem o financia, ou seja, a parte de cima dessa terrível cadeia criminosa alimentar. Creio que nosso preclaro autor esteja assistindo filmes demais.
 
Não tenho conhecimento, e não tenho mesmo, que a parte de cima da pirâmide tenha sido de alguma forma atingida, em algum momento na história deste país. De cara, os bandidões constituem advogadões (ou advogadaços) que vão desconstituir as acusações ou pela falta de provas, ou pelos "embargos auriculares" - para que não conhece o termo, é aquele papo com o juiz numa boa mesa -, ou ainda pelo simples fato de que o acusador não é figura ilibada e idônea - coisa que geralmente o bandidão é.
 
No máximo, o bandidinho levanta poeira, mas não puxa o tapete. O bandidão nem será tão constrangido assim. Mas o problema é que o bandidinho, se resolver mesmo abrir a boca, assina a sentença de morte.
 
Aí, trata-se de uma questão cartesiana: calar, continuar vivo e de alguma forma nos negócios (mesmo que não por muito tempo); ou abrir a boca e submeter-se ao holocausto para que a família não seja fuzilada? A opção me parece óbvia.
 
Ou seja: não será exatamente prendendo bandidinhos (não que eu concorde com a operação mostrada pelo "Fantástico"; aquilo ali foi uma torpeza, em todos os sentidos, e só aconteceu porque foi realizada dentro de uma favela) que bandidões serão presos. Aliás, bandidinho não prende bandidão porque bandidão não deixa rastro, não passa recibo e não se deixa filmar.
 
O caríssimo jornalista deveria estar preocupado, preocupadíssimo, com uma PEC que tramita no Congresso e pretende tirar os poderes de investigação do Ministério Público. Os procuradores, sim, prendem bandidões - ou, pelo menos, dão aquela dor de cabeça que os mafiosos não gostam de ter.
 
O MP faz parte de um tripé que envolve Polícia Federal e Receita Federal, organismos que se não são impunes à corrupção, não sofrem o assédio direto de polícias civis e militares. E têm acesso a informações, sobretudo as fiscais, que não ficam ao alcance do meganha.
 
Se a casa de muita gente cai é porque o cometeu o pecado da vaidade. O bandidão é traído pelo bolso e não porque colocou quilos de cocaína e alguns fuzis na mala do carro e foi vendê-las no alto do morro.
 
O bandidão, acima de tudo, se serve do poder econômico. E parafraseando um amigo meu: no tempo em que se vendia gente, bandidinho era troco.
 
Tal como esse tal Matemático que foi fuzilado.
 
 

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Algo de podre no reino

Ficou célebre a frase "Há algo de podre no reino da Dinamarca", em "Hamlet" - ato 1, cena 4. O príncipe solitário imaginado por Shakespeare faz a pensata quando observa que, ao seu redor, nada acontece exatamente como planeja. As coisas se perdem no meio da mensagem, e não por falta de entendimento entre os interlocutores.

Os reinos são podres.

Por reinos entenda-se governos.

Mais abaixo, em vermelho, acrescento artigo de Demétrio Magnoli, publicado nas edições de hoje do Globo e do Estadão. O sociólogo é um dos mais proeminentes pensadores do conservadorismo brasileiro, mas isso não é necessariamente mau. Alguém há de fazer oposição, sempre benéfica.

O tema do artigo é um cidadão chamado Eike Batista. Bilionário e tido como o exemplo do empresário brasileiro do século 21, é o ícone do tardio capitalismo pátrio. Tem pés de barro, porém. E Demétrio elenca os problemas que o fizeram despencar do ranking internacional dos ricaços.

Já tinha lido, tempos atrás, artigo de JR Guzzo, na Veja, no qual apontava algumas incoerências no avanço vertiginoso do Grupo X. Incoerências, não; inconsistências. Afinal, o jornalista indagava, ao longo do texto, como o virtuoso Eike alcançou tal patamar com um patrimônio de miragem.

O cadáver começou a exalar a fedentina quando Elio Gaspari deu o furo, numa coluna dos domingos: o embaixador brasileiro em Cingapura foi constrangido a agir como lobista para que o estaleiro Jurong trocasse o litoral capixaba pelo Porto do Açu, de ninguém menos que Eike. O diplomata foi chamado ao Brasil e a história causou tremendo barata-voa.

O restante da imprensa entrou no caso, ministros tiveram de abandonar obsequioso silêncio. O governador Renato Casagrande correu atrás do prejuízo. Resumo: dias atrás, o Jurong fechou contrato e fica no Espírito Santo.

Entrou areia na engrenagem de Eike.

O artigo de Demétrio é esclarecedor, mas não creio que alguém no governo, ou no PT, vá respondê-lo - tal como José Sérgio Gabrielli fez, na Folha do dia 24, ao professor Rogério Cezar de Cerqueira Leite, rebatendo a acusação de que se a Petrobras ficou mais perto da insolvência, isso é devido ao hoje secretário de Planejamento da Bahia e ex-presidente da estatal. Apesar do tropeço, Eike ainda é uma figura necessária.

Entre os esclarecimentos do artigo de Demétrio, está o fato de que Eike segue em linha reta os ensinamentos do pai, Eliezer Batista. Para quem não sabe quem foi, Eliezer era o "dono" da Vale do Rio Doce nos tempos estatais. Só saiu da mineradora com a privatização. Mas, dizem as lendas urbanas, levou os segredos da empresa, e os legou a Eike. Que, como bom aprendiz, teve o mínimo de competência ao fazer render a herança recebida.

Eliezer mais se serviu do que serviu à ditadura. Os militares se encabidaram na empresa, tal como fizeram na Petrobras - que teve entre seus presidentes Ernesto Geisel e seu ex-ministro das Minas e Energia, Shigeaki Ueki. Isso, claro, não é sinônimo de competência, por mais que no quadro das duas estatais tivessem generais e coroneis formados pelo Instituto Militar de Engenharia. A questão ali era política, não econômica. As baias tinham que ser ocupadas pelos amigos e capachos.

Abaixo, em vermelho, vai o artigo de Demétrio. Vale lê-lo, sem preconceitos. Dá uma ideia de como o Brasil continua sendo um teatro pujante para farsantes travestidos de gênios. Há algo de podre, claro. E não é de hoje.

Eike, emblema e indício :: Demétrio Magnoli

Eike Batista valia US$ 1,5 bilhão em 2005, US$ 6,6 bi em 2008, US$ 30 bi em 2011 e US$ 9,5 bilhões em março passado, depois de 12 meses nos quais seu patrimônio encolheu num ritmo médio de US$ 50 milhões por dia. Desconfie das publicações de negócios quando se trata do perfil dos investimentos de grandes empresários. Apenas cinco anos atrás, uma influente revista de negócios narrou a saga de Eike sem conectá-la uma única vez à sigla BNDES. Mas o ciclo de destruição implacável de valor das ações do Grupo X acendeu uma faísca de jornalismo investigativo. Hoje, o nome do empresário anda regularmente junto às cinco letrinhas providenciais - e emergem até mesmo reportagens que o conectam a outras quatro letrinhas milagrosas: Lula.
A história de Eike é, antes de tudo, um emblema do capitalismo de estado brasileiro. Durante o regime militar, Eliezer Batista circulou pelos portões giratórios que interligavam as empresas mineradoras internacionais à estatal Vale do Rio Doce. Duas décadas depois, seu filho converteu-se no ícone de uma estratégia de modernização do capitalismo de estado que almeja produzir uma elite de megaempresários associados à nova elite política lulista.

"O BNDES é o melhor banco do mundo", proclamou Eike em 2010, no lançamento das obras do Superporto Sudeste, da MMX. O projeto, orçado em R$ 1,8 bilhão, acabava de receber financiamento de R$ 1,2 bilhão do banco público de desenvolvimento, que também é sócio das empresas LLX, de logística, e MPX, de energia. No ano seguinte, o banco negociou com o empresário duas operações de injeção de capital no valor de R$ 3,2 bilhões, aumentando em R$ 600 milhões sua participação na MPX e abrindo uma linha de crédito de R$ 2,7 bilhões para as obras do estaleiro da OSX, orçadas em pouco mais de R$ 3 bilhões, no Porto do Açu, da LLX. Hoje, o endividamento do Grupo X com o banco mais generoso do mundo gira em torno de R$ 4,5 bilhões - algo como 23% do seu valor total de mercado.

"A natureza sempre foi generosa comigo", explicou Eike. "As pessoas ricas foram as que mais ganharam dinheiro no meu governo", explicou Lula. A política, não a economia, a "natureza" ou a sorte, inflou o balão do Grupo X. Dez anos atrás, o BNDES não era "o melhor banco do mundo". Ele alcançou essa condição por meio de uma expansão assombrosa de seu capital deflagrada no fim do primeiro mandato de Lula da Silva. A mágica sustentou-se sobre o truque prosaico da transferência de recursos do Tesouro Nacional para o BNDES. O dinheiro ilimitado que irrigou o Grupo X e impulsionou uma bolha de expectativas desmesuradas no mercado acionário é, num sentido brutalmente literal, seu, meu, nosso, dos filhos de todos nós e das crianças que ainda não nasceram, mas pagarão a conta da dívida pública gerada pela aventura do empresário emblemático.

Eike é emblema, mas também indício. A saga da célere ascensão e do ainda mais rápido declínio do Grupo X contém uma profusão de pistas, ainda não exploradas, das relações perigosas entre o círculo interno do lulismo e o mundo dos altos negócios.

Na condição de "consultor privado", em julho de 2006, o ex-ministro José Dirceu viajou à Bolívia, num jatinho da MMX, exatamente quando o governo de Evo Morales recusava licença de operação à siderúrgica de Eike. Nos anos seguintes, impulsionado por um fluxo torrencial de dinheiro do BNDES, o Grupo X atravessou as corredeiras da fortuna. Durante a travessia, em 2009, o empresário contou com o beneplácito de Lula para uma tentativa frustrada de adquirir o controle da Vale, pela compra a preço de oportunidade da participação acionária dos fundos de pensão, do BNDES e do Bradesco na antiga estatal. Naquele mesmo ano, o fracasso de bilheteria "Lula, o filho do Brasil", produzido com orçamento recordista, contou com o aporte de um milhão de reais do empreendedor X.

A parceria entre os dois "filhos do Brasil" não foi abalada pela reversão do movimento da roda da fortuna. Em janeiro passado, a bordo do jato do virtuoso empresário, Eike e o ex-presidente visitaram o Porto do Açu. O tema do encontro teria sido um plano de transferência para o Açu de um investimento de R$ 500 milhões de um estaleiro que uma empresa de Cingapura ergue no Espírito Santo. Em março, depois que Lula recomendou-lhe prestar maior atenção às demandas dos empresários, Dilma Rousseff reuniu-se com 28 megaempresários, entre eles o inefável X. Dias depois, numa reunião menor, a presidente e um representante do BNDES teriam se sentado à mesa com Eike e seus credores privados do Itaú, Bradesco e BTG-Pactual.

Equilibrando-se à beira do abismo, o Grupo X explora diferentes hipóteses de resgate. O BNDES, opção preferencial, concedeu um novo financiamento de R$ 935 milhões para a MMX e analisa uma solicitação da OSX, de créditos para a construção de uma plataforma de petróleo. Entrementes, diante da deterioração financeira do "melhor banco do mundo", emergem opções alternativas. No cenário mais provável, o Porto do Açu seria resgatado por uma série de iniciativas da Petrobras e da Empresa de Planejamento e Logística. A primeira converteria a imensa estrutura portuária sem demanda em base para a produção de petróleo na Bacia de Campos. A segunda esculpiria um pacote de licitações de modo a ligar o porto fincado no meio do nada à malha ferroviária nacional, assumindo os riscos financeiros da operação.

No registro do emblema, a vasta mobilização de empresas estatais e recursos públicos para salvar o Grupo X pode ser justificada em nome da "imagem do país no exterior", como sugere candidamente o governo, ou da proteção da imagem do próprio governo e de seu modelo de capitalismo de estado, como interpretam as raras vozes críticas. No registro do indício, porém, o resgate em curso solicitaria investigações de outra ordem e de amplas implicações - que, por isso mesmo, não serão feitas.
  

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Como transformar um oportunista em democrata

Não chego ao ponto de dar parabéns aos evangélicos, tal como fez Reynaldo Azevedo em seu blog na Veja.com, ao comparar a forma de protesto daqueles que apóiam Marco Feliciano com a dos seus adversários. Apesar do texto que considero brilhante (impressionante como os conservadores têm bons escribas e intelectuais), não sou cínico a este ponto.

Não bateria palmas jamais pelo fato de terem feito um protesto civilizado - isso é absolutamente claro - contra a presença de José Genoino e João Paulo Cunha na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Em silêncio, com cartazes de cartolina e sem dar um pio, foram lá dizer que os mensaleiros não têm condições morais e éticas de estarem onde estão. Ambos foram condenados, como se sabe, no STF e aguardam apenas o final do final do julgamento para cumprirem suas penas.

É o jogo jogado. Ou tem coisa mais dolorosa para os petistas que ver alguns dos seus sendo apontados como leprosos bíblicos, impurezas que tisnam águas límpidas?

Os partidários de Feliciano cumpriram bem o roteiro que lhes foi passado. Ao contrário daqueles que queriam (Ou ainda querem? Nunca se sabe...) arrancar o deputado-pastor da presidência da Comissão de Direitos Humanos, não houve gritos, barulheira, xingamentos, dedos na cara. Ninguém subiu na mesa nem enfrentou a segurança da Câmara. Não se verá foto de manifestante com a veia do pescoço estufada, vermelho descontrolado, disparando perdigotos, incontido de raiva babenta.

Malandramente, Feliciano conseguiu marcar a diferença. De um lado, a claque amestrada, certinha, mas democrática, de neopentecostais. Do outro, os fascistóides que na falta de argumentos acreditam que a coisa se resolve na base do cacete. Na batalha da comunicação, o deputado-pastor deu um verdadeiro baile. Os burraldos que foram até lá, subiram na mesa, tocaram apito, e fizeram da Câmara uma Casa de Mãe Joana maior do que ela já é, se auto-aplicaram a classificação de inimigos mortais da democracia e da variedade de opiniões.

(Não, de forma alguma acho que não devem protestar, manifestar sua contrariedade. Defendi-os quando perseguiram Yoani Sanchez por onde quer que fosse, quando ela aqui esteve. Acho mesmo que só foi impedida de falar porque aqueles que a trouxeram comeram mosca ao não providenciar segurança para que se expressasse. Sou partidário de todo e qualquer tipo de protesto. Posso não concordar com a forma nem com o conteúdo, mas nunca impediria quem quer que fosse de expor suas idiotices. Todos têm direito a falar, pensar e manifestar imbecilidades.)

Feliciano é o tipo do oportunista perigoso, que sabe jogar bem no tabuleiro da irritação alheia. Enquanto verberam contra ele, bosteja contra John Lennon, Mamonas Assassinas, negros, homossexuais, marcianos etc. Suas aparições são campeãs de audiência no You Tube. Sob uma ótica religiosa enviesada, vai obtendo projeção e espaço na imprensa. Se amanhã disser que o preço do tomate, esse inusitado vilão da inflação, tiver subido à estratosfera por causa da ira divina, pode ser que consiga influenciar as especulações do mercado financeiro.

Embora como farsa, o deputado-pastor segue o mesmo comportamento do senador John McCarthy. Acolitado pelo advogado Roy Cohn, seu assessor (e homossexual, registre-se) parlamentar, e pelo futuro presidente Richard Nixon, McCarthy foi a personificação do ridículo na radicalização anticomunista nos Estados Unidos. Vá lá que se vivia a Guerra Fria e que os Rosemberg tinham, pouco tempo antes, sido mortos por supostamente venderem o segredo da bomba atômica aos soviéticos. Mas o parlamentar, proclamado cavaleiro das liberdades democráticas, começou a enxergar até nas pedras da rua uma ameaça comunista.

Quando foi destroçado por Ed Murrow, no debate da CBS, McCarthy já estava na descendente. Ninguém mais levava a sério suas acusações, desde que convocou uma modesta empregada doméstica para depor, homônima que era de uma suposta acusada de espionagem comunista - a pobre mulher não sabia se comunismo era para comer ou passar no cabelo.

O que derrubou o senador foi a seara na qual seus adversários o enfrentaram: a das ideias. Se é para confrontar argumento contra argumento, veremos quem pode mais - pensaram seus antagonistas. Percebeu-se, então, que a caça as bruxas tinha um quê de pantomima e, principalmente, atentava contra um bem fundamental e caro da Constituição americana: a liberdade de expressão.

Aqui, fizeram o contrário. Os adversários de Feliciano não apenas tentaram enxotá-lo, como calá-lo. E da pior maneira possível: via protestos violentos. O efeito, evidentemente, foi oposto. O deputado-pastor, de figura risível, tornou-se arauto dos conservadores e campeão da liberdade de expressão - mesmo quando pediu o fechamento das seções da CDH teve razão, pois queriam impedi-lo de exercer a função para a qual fora eleito. E provocador, passou a postar na internet vídeos que, sabia, iriam aumentar a irritação de quem não se conformava com ele.

Imaginem se tivessem feito o mesmo com McCarthy?

Teria virado presidente dos EUA, fácil, fácil.

PS - E Henrique Eduardo Alves, que várias vezes disse que a situação de Feliciano era insustentável? Não vão cobrar nada dele por tais palavras? Não vão invadir o gabinete da presidência para forçá-lo a cumprir a promessa?

Ora, senhores...

terça-feira, 9 de abril de 2013

Quanto mais gritaria, mais Feliciano gosta

O deputado Marco Feliciano conseguiu uma projeção que jamais imaginou, com suas posições discutíveis e opiniões esdrúxulas. A mais recente é que John Lennon e os Mamonas Assassinas foram mortos por ira de Deus. Lendo assim, sem anestesia, é claro que parece um absurdo. Mas não é se partirmos de alguns princípios dogmáticos. Tal como: Deus tem o dom da vida, é ele quem dá e retira, e por razões que aos simples mortais não é dado saber. A bala de um louco com Mark Chapman ou a montanha no caminho do teco-teco da banda são apenas os vetores do cumprimento de um roteiro pré-determinado para cada um.

Para tanto, há que se acreditar na reencarnação e que não cai uma folha sequer sem Deus saiba. Há que se crer também que passamos por dores que serão nossa redenção pelos graves erros do passado. A forma da morte, diante de uma espiritualidade incomensurável e que antes de mais nada trabalha para a evolução de cada alma que vive neste mundo de provas e expiações, é o que menos importa. Afinal, todos nós estaremos amparados pelos obreiros da luz, seja qual for nosso grau de elevação.

Tudo isso, porém, são conceitos. Muitos veem neles uma imensa bobagem, mais uma dessas explicações pseudo-filosóficas que tentam explicar a existência. Outros tantos pensam exatamente como Feliciano, no Deus de ira, severidade e intolerância com deslises. É outro conceito, que a mim cabe apenas estabelecer o quanto discordo dele.

O deputado-pastor, porém, não vem proferindo supostas asneiras e adotando surpreendentes posturas por acaso. Marqueteiro de si mesmo, Feliciano busca a provocação. Quer que desçam-lhe tacape e borduna sem dó, tachando-o de medieval, tosco, tacanho. Quanto mais graves forem as críticas, maior será a cisânia. Mais aumentará a temperatura do confronto.

Feliciano não é perigoso por aquilo que diz, mas pela projeção que dão às suas palavras. Quando sobe ao púlpito nas pregações, mostra a uma legião de pessoas que pensam como ele que, ao tentarem cassar-lhe a palavra, buscam impor o silêncio a outros tantos que o escutam, entendem e o apóiam. Nas entrelinhas, exorta-os a não se deixarem esmagar; que os fieis em Cristo e em Deus são a verdadeira maioria; que com eles está a palavra divina; que são os escolhidos; que juntos estabelecerão os ditames preconizados pelo verbo superior.

Esse é o princípio da guerra santa. Feliciano tornou-se, por intransigência e incompreensão dos adversários desse jogo perigoso, um referencial religioso. De obscuro chefe de seita, hoje se ombreia e conta com apoio de figuras de peso do movimento neopentecostal. O deputado foi catapultado a uma altura tal que seu partido já fala em lançar candidato à Presidência da República. Bravata? Pode ser, mas até semanas atrás, quando a projeção do pastor era traço na escala de popularidade, seu PSC se dava por satisfeito em fazer parte da bancada governista, alegre participante de uma política amesquinhada.

Os ultraconservadores, que até então careciam de um líder, agora têm um. E que assusta seus inimigos. O discurso da intransigência só se torna forte quando prestam atenção nele e pretendem combatê-lo longe da seara das ideias. Feliciano saboreia cada inconsistência que diz, amplificada imediatamente pela imprensa. Se farta com a condenação dos modernos, grupelho sempre à espera da salvadora caroninha que lhes retirará o mofo da obscuridade.

Até a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, ajudou a dar importância às palavras de Feliciano. E errou quando disse que ele vem incitando à violência e ao ódio. Não, não. Seus adversários é que querem tirá-lo da presidência da comissão à base de tapas.

O deputado-pastor Marco Feliciano é um reacionário de ocasião, um oportunista religioso que, como já disse aqui antes, ganhou envergadura por palavras que soaram como intoleráveis provocações a grupos que pensam de forma diametralmente oposta. Agora, tudo que falar será com o intuito de, pela via do fustigamento, tirar seus adversários do sério - e ganhar mais projeção.

A última coisa que Feliciano quer nesse exato instante é o silêncio, dele e dos que o elegeram como inimigo. Quanto mais gritaria, mais ele se diverte, mais ganha musculatura, mais espaço recebe.

A sandice está dando uma goleada do bom-senso.

PS - aos caçadores de ideias alheias. Não posso impedi-los tomá-las para si, mas, ao menos, não fazia mal dar a mim os créditos de conceitos que defendi antes que se dessem conta da atual situação.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Quem sai ganhando

Uma coisa já deu para perceber: Marco Feliciano está travando uma espécie de guerra santa. É a convicção dele quando assegura que não renuncia à presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Do seu lado, uma multidão de evangélicos (e outros grupos que ainda não se atreveram a mostrar o rosto) que concorda com as opiniões do deputado-pastor sobre homossexuais, negros, céu e inferno.

O desgaste é imenso. Feliciano aposta no cansaço. Uma hora, a turma que vai para lá para desacatá-lo desiste. Sabe que esse pessoal tem fôlego curto e que desaparece, assim que a imprensa deixar de dar cobertura. Jornais e jornalistas são volúveis. Aquilo que começa como um vendaval vira um sopro semanas depois.

Terão dado a Feliciano os "15 minutos de fama" que garantirá sua reeleição, com o pé nas costas, ano que vem. Não chego ao ponto de dizer que se tornará um dos caciques da Câmara, mas certamente sairá maior do que entrou quando foi eleito para a comissão. As manifestações tiveram o poder de tirá-lo do baixo clero.

Não concordo, em absoluto, com qualquer opinião de Feliciano sobre negros, homoafetivos, futebol, política, filosofia, sociologia... Tenho ainda a mais completa ojeriza àquilo que representa; poucas religiões me incomodam tanto quanto os neopentecostais e seu discurso medieval e oportunista, herdado de miseráveis como Billy Graham ou Jimmy Swaggart - que chegaram de mansinho no Brasil, comprando horários nas manhãs de domingo em redes de TV com dificuldades financeiras, como a extinta Tupi.

Mas tenho que admitir que o direito de Feliciano é tanto quanto o de seus 512 colegas. Não existe, pelo menos contratualmente, o deputado sênior, com mais possibilidades do que o júnior. Portanto, se são todos iguais, o pastor pode fazer parte de qualquer negociação dentro da Câmara.

E assumir qualquer posto, assim como outros dos seus pares, cujas carreiras mais parecem poleiro de galinheiro. Mas que nem por isso são impedidos de coisa alguma.

Não votei em Feliciano, tampouco votaria. É o tipo de figura que desprezo, pelo que diz, pensa e representa. Mas temos de admitir: ele não é biônico, não ganhou a cadeira por dedaço do Palácio. O voto de quem deu a ele um mandato vale rigorosamente o mesmo que o meu.

Feliciano é um manipulador de ignorantes e aculturados. Sim e não. Se pegarmos o perfil do que são hoje estas seitas neopentecostais, constataremos que sua penetração vem subindo de estrato social. Têm uma mensagem mais terrena que qualquer outra. Quem não deseja prosperidade ou ouvir que ganhar dinheiro não é pecado?

Os caciques da Câmara fazem cálculos bem mais frios e não dão a mínima para a balbúrdia daqueles que acham que vão arrancar Feliciano a tapa do comando da Comissão. Tirá-lo seria comprar uma briga com um grupo de eleitores - os evangélicos - com imensa capilaridade. Ninguém ali desperdiça votos e quer ter passe livre em igrejas, centros espíritas, terreiros ou qualquer outro local de reunião religiosa.

Tentaram pregar em Dilma o cartaz de que seria favorável ao aborto, quando disputava a sucessão presidencia. Sabiam que essa era uma questão delicada para a hoje presidente e que a deixaria em saia-justa. Rebolou, enrolou, Lula entrou na área e chutou a bola na Lagoa. Henrique Eduardo Alves, macaco velho na política, disse que a situação de Feliciano era "insustentável". E só. Falou o que uma parte queria ouvir, mas não moveu - e nem moverá - um único músculo para tirar o colega de onde está.

Pior que a ira divina é a ira de um eleitor, cujo número é grande e só faz aumentar. Esse é o cálculo que Henrique e outros deputados fazem. Mais nenhum.

Saldo disso tudo: deram a Feliciano musculatura.

Acho, sim, que sua indicação não poderia ser recebida com indiferença ou aquiescência. Acho, sim, que grupos organizados deviam se manifestar contra mais uma decisão que mostra o quanto o Parlamento e o eleitor não andam de mãos dadas. Acho, sim, que os artistas e intelectuais deveriam assinar protesto contra aquilo que Feliciano representa.

Mas lamento profundamente que o ganhador dessa pendega será um personagem menor, sem envergadura. Um homúnculo será transmutado pelos setores mais reacionários e boçais em campeão da liberdade de expressão, e em messias de um culto inqualificável.


sexta-feira, 15 de março de 2013

D. Ruth e o provincianismo

Vi um post, no Facebook, do meu amigo Gilberto Costa sobre texto de Ruth de Aquino, na Época, a respeito daquilo que os argentinos têm que nós não temos. Ela lembra: dois oscars, cinco prêmios Nobel, Messi e, agora, um papa. Bom, tais comparações são para quê mesmo?

Não servem para nada. São, na verdade, uma imensa, uma grandiosa bobagem. Não é patriotada da minha parte, mas penso que cada qual com seu cada um. O chilenos também têm dois Nobel, os colombianos um. Parabéns, mas nem por isso nossos escritores são piores, ou nosso cinema mais precário, ou nossos jogadores inferiores, ou nossos religiosos mais distantes de Deus.

Acho que tais comparações são típicas de um certo complexo de inferioridade, do tipo "a grama do vizinho é sempre mais verde". Acho mais: um tremendo provincianismo. Penso que se Messi é um cracaço de projeção internacional, se o papa veio de Buenos Aires, se Ricardo Darín é um ator excepcional, se Adolfo Perez Esquivel um humanista incomparável, melhor para todos nós, latino-americanos. Nesse ponto, Hugo Chávez estava certo: temos que nos orgulhar, antes de mais nada, do continente ao qual pertencemos.

Por que? Porque, por décadas, nossas conquistas intelectuais, esportivas, artísticas ficaram empanadas pelo desprezo com que europeus e norte-americanos (exceto os mexicanos e canadenses incluídos) nos devotavam.

Nos filmes, o bandido fugia para o Rio de Janeiro, capital de Buenos Aires.

O Zé Carioca era um papagaio malandro e com ojeriza ao trabalho, extremo oposto da pregação protestante que formulou a identidade dos Estados Unidos.

As brasileiras andavam com bananas, abacaxis e melancias na cabeça, como Carmem Miranda (e continuam sendo máquinas do sexo fácil, que atraem turistas de todo o mundo).

Cobras e jacarés eram facilmente encontrados nas ruas brasileiras.

O Brasil era somente o Rio; São Paulo jamais existiu.

Aliás, tínhamos tanta vergonha de nós mesmos que nas cédulas da década de 20 e nos selos vinha impresso Estados Unidos do Brasil. Quisemos superar nossa inferioridade, imposta em boa parte pela nascente elite pós-escravidão, no papel e no decreto. Sempre fomos República Federativa do Brasil, mas deixamos isso de lado por certo tempo.

Além da contribuição de uma elite europeizada na depreciação da nossa imagem, contávamos com o ranço imperialista a nos diminuir a importância e o potencial. Sempre fomos os "macaquitos" com que os próprios argentinos várias vezes nos brindaram nos jogos da Libertadores. Os americanos e os europeus brancos, de vergonhosa trajetória em matéria de direitos humanos, reforçavam tal ideia, copiada pelos "hermanos".

Tudo porque nossa cor é negra, porque aqui não dizimamos todos os escravos que trouxemos e índios que encontramos. Vários bem que tentaram fazer do Brasil um país branco, atribuindo ao negro e ao índio uma indolência que somente existe numa literatura, numa antropologia e numa sociologia datadas.

Não acho graça na terrível crise econômica argentina, tampouco na sequência de presidentes trapalhões (livro somente a cara do Alfonsín). Lamento somente. A Argentina é um país admirável, como o Chile, o Peru, a Colômbia, o Equador... A América Latina, em resumo, é admirável. Tudo o que legamos ao mundo, à Humanidade, é uma conquista de um sub-continente que foi durante década visto como um quintal de um vizinho opressor, uma região que deveria ser impiedosamente explorada (pelos de dentro e pelos de fora) como a África e parte da Ásia.

As conquistas do argentinos são, um pouco, a dos brasileiros, como as nossas igualmente um pouco as deles. Esse raciocínio o-que-eles-têm-que-nós-não-temos é ultrapassado e tacanho. Somente reforça diferenças que deveriam estar há muito superadas. É o olhar invejoso, triste, medíocre, inaceitável sob qualquer ponto de vista.

Péssimo texto, dona Ruth. Péssimo.

quinta-feira, 14 de março de 2013

O homem sem mácula

O problema das religiões é que criam uma expectativa que não podem confirmar. Jogam no vácuo que existe entre o explicável e o oculto, uma zona cinzenta que para muitos tem elementos concretos, enquanto que para outros tudo não passa de mera fantasia reforçada por séculos. Seus mais proeminentes representantes são redimidos ou seres humanos de natureza muito diferente da nossa, o que em ambos os casos se provaria a força do impalpável.

O papa Francisco tem um passado pecaminoso de omissão ante a ditadura argentina, tal como Bento XVI foi acusado de colaboração com o nazismo. Tais fatos não me surpreenderam, não me surpreendem, nem me surpreenderão jamais. A Santa Madre Igreja, como qualquer instituição - nesse caso religiosa -, tem seus planos próprios, que nem sempre têm a ver com aquilo que preceitua.

Não é nem um pouco estranha tal constatação da minha parte. Não há pureza nas religiões; há pureza nos homens. Pureza na crença, na esperança. Se as revelações se dão na catedral ou na sinagoga, sob minha ótica isso não tem importância alguma.

Disse Jesus: "Vá, tua fé te salvou". Isto é o fundamental.

Ele, que foi um dos profetas da Humanidade, não legou nada ligado a templos, seitas ou algo assim. Atribuiu todos os bens (e males) ao homem, esse que acredita, que medita, que busca.

Na Igreja Católica, há líderes para todas as ocasiões, como existem no islamismo, no judaísmo, para falarmos somente nas religões seculares. Há os homens de guerra e os de paz, os de comércio e os de oferta, os que cobram e os que dão, os que se omitem e os que enfrentam. Acreditar que as instituições purificam, ou que estão acima dos erros daqueles que as compõem, é uma imensa ingenuidade.

Acho justo e certo, aliás, que se busque o homem puro, alguém que represente o melhor da nossa essência. Mas confesso que não espero o surgimento do ser sem mácula.

Se estou descrente na raça humana? Não. Tenho a certeza de que os bons são em maior número que os maus; acredito na vitória dos generosos sobre os miseráveis. Mas procuro dar a dimensão correta ao estabelecimento que representa a Igreja, ou melhor, sobre o que significam as religiões.

Claro que tenho minha fé. Não sou agnóstico, longe disso. Meu templo sou eu mesmo, com meus erros e meus acertos. Como o novo papa, trago pecados e há quem me aponte o dedo, que me condene, que me culpe. Unanimidade não existe. E quando existe, é de se desconfiar - também não acredito no que disse Nélson Rodrigues, que é burra.

O que espero do novo papa é pouco, muito pouco, quase nada. Quero apenas que não desaponte quem acredita na sua santidade, como já fez de vez anterior. E se mais uma vez o fizer, não me surpreenderá. As instituições são maiores e mais poderosas que os homens.

Geralmente fracos. Absolutamente humanos.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Sem qualquer arranhão

A presença da blogueira Yoani Sanchez no Brasil está servindo para o retorno de um debate interessante: sobre a liberdade de expressão. Ouvi, num programa da TV paga, hoje de manhã, alguém dizer que os protestos que ela vem enfrentando desde que aqui chegou são uma demonstração, em miniatura, dos gestos que deram contorno ao fascismo e ao nazismo. Trata-se, evidentemente, de um imenso exagero.

O máximo que vejo, da parte desses manifestantes, é falta de educação, deselegância, burrice, indigência intelectual. Mais nada. Se vamos falar de direito de expressão, temos de tornar patente que a turma que foi fazer barulho contra a cubana o exerce plenamente. A permissão de criticar, seja em que tom for, é absolutamente legítima no Brasil. E para dirimir dúvidas causadas por excessos existe a Justiça (o que vem daí é outra questão; tratemos do Judiciário depois).

A própria Yoani - para mim uma escritora modesta, mas que graças à ditadura castrista foi elevada ao grau de guerreira da liberdade por alguns apressados e de vendilhã da pátria por alguns desinformados - foi a primeira a dizer que entendia os protestos. Concordo com ela: se queremos ter liberdade, os contrários devem ser compreendidos. Devemos dar direito às pessoas de terem opiniões estúpidas e cometerem atos imbecis. Ou somos todos tão geniais assim que acertamos sempre?

Claro que não.

O que vem me incomodando nesta passagem da blogueira pelo país são algumas manifestações que atentam contra a liberdade de opinião da parte de quem se diz a favor dela. E nem se diga que são os manifestantes de esquerda, que não têm a menor ideia do que se passa em Cuba hoje - cuja precariedade não é somente causada pelo embargo, mas também pelo governo predatório que não quer se despedir do poder - e ainda sonham com um "socialismo moreno" que jamais vai existir.

Colocar em dúvida como Yoani vive e sobrevive era algo já esperado da parte daqueles que não têm a menor simpatia por ela. Se ela é agente da CIA, se é agente dupla do governo cubano, trata-se uma teoria conspiratória que nos remete aos tempos maniqueístas do "ame-o ou deixe-o".

O que me espanta é que jornalistas que tinham a obrigação de fazer uma análise sem paixões se aferrem a um ato (burro, é bom ressaltar) de manifestantes, que impediram a blogueira de abrir a boca. Então, nossa democracia está em risco por causa de coisas sem qualquer significância?

Ora, por favor...

Minha primeira matéria assinada, na extinta Tribuna da Imprensa, lá por 1986, foi um protesto de estudantes contra o general Vernon Walters, que voltava ao Brasil como adido de negócios dos Estados Unidos. Era o governo Reagan lá e o Sarney aqui. Vivia-se o pavor, nem tão concreto assim - hoje se vê -, de um retrocesso e da volta dos militares ao poder.

O velho general golpista, braço da inteligência americana no Brasil nos tempos do embaixador Lincoln Gordon, foi recebido por uma saraivada de ovos tão logo desembarcou para a coletiva no Hotel Glória. Ele mesmo não mandou correr atrás de ninguém; a prestimosa Polícia Militar carioca, de boca torta por ser linha auxiliar da ditadura por tanto tempo, é que saiu atrás da garotada. E como os repórteres estavam em cima, comediu-se nas borrachadas.

Resumo da confusão na Praça do Russel: cinco rapazes "encaçapados" e levados para a velha delegacia do Catete - e liberados logo em seguida. No Glória, Walters, com seu português perfeito de anos de "bons serviços" prestados à relação Brasil-EUA, dava o recado.

A ditadura não voltou; o governo Sarney não caiu. Walters retornou a Washington, os garotos para os bancos da faculdade, eu para a Tribuna e seguimos em frente. Nossa democracia, por força das vontades de vários setores (inclusive alguns militares) já ali dava sinal de alguma rigidez.

Mesmo porque, naqueles meses de planos Cruzado I e II, a disparada de preços em meio ao congelamento, e a inflação de mais de 80% no fechamento do governo, ameaçavam mais a estabilidade política do que a presença de qualquer estafeta da CIA.

Tal como Yoani. Se a moça não pode falar, impedida por manifestantes, é porque a organização do evento no mínimo não se preparou. Tivesse pedido proteção policial (um direito legítimo, sobretudo porque se trata de uma polêmica figura, que vem despertando ódios e amores desde que desembarcou em Recife), tal como no episódio de Walters, ela certamente teria o direito garantido à palavra.

(E qual é o medo de se pedir reforço de policiamento? Que caia na provocação e um protesto se torne batalha campal? Pode ser, mas já se sabia que a cubana não passaria incólume por onde quer que vá enquanto estiver no Brasil. E os promotores da sua visita estejam certos de que gestos imbecis acontecerão outras vezes.)

Manifestações violentas, por palavras ou atos, existem nas democracias, sim. Na Espanha, os desempregados vão às ruas contra as medidas do governo Rajoy. Na Grécia, servidores saem em passeata também contra medidas do governo. E na França, e em Portugal, e na Argentina. Está na essência do homem a briga, o protesto, que muitas vezes não termina bem.

Ovo da serpente? Camisas Negras de Mussolini? SA de Ernst Röhm? Pelo amor de Deus, tais comparações são a mais inaudita desonestidade intelectual. Basta reler a história.

Os Camisas ganharam poder num país fraco, com um rei débil, que abriu as portas para o regime de exceção. As SA idem, e só porque a morte do marechal Hindemburg encancarou uma porteira que já estava aberta aos nazistas. E o ovo da serpente é um bom filme de Ingmar Bergman.

Fora isso, mais nada. Nenhum abalo na democracia brasileira.