terça-feira, 15 de maio de 2012

O resultado do ridículo

Fui um dos primeiros jornalistas a entrevistar Fernando Collor depois que saiu de longo exílio imposto pela Justiça, por conta das traficâncias do esquema PC Farias, que o derrubou. Fui despido de simpatias (que não tenho) ou antipatias (que são imensas) por este personagem da pobre política nacional. Com Jorge Eduardo Antunes e João Carlos Rodrigues, mais Ricardo Marques pilotando a câmera, publiquei duas páginas no então respeitável e legível Jornal de Brasília. No domingo, em espaço e edição nobres.

Lembro especialmente de uma pergunta feita durante a entrevista: quem é esse novo Collor? O hoje senador pelo PTB de Alagoas filosofou. Disse ter aprendido e buscou dar outras provas de que melhorara graças a doses maciças de humildade, estudo e observação. E voltava à cena se somando à base do seu ex-figadal inimigo, o então presidente Lula.

Sobre isso, aliás, Collor disse não haver problemas. Quer dizer: mudara realmente. Avançara.

Isso, evidentemente, poderiam pensar os ingênuos.

Não mudou coisa alguma. E a prova disso está no noticiário. Gosta da imprensa quando lhe é a favor, tal como o episódio que descrevi. Quando é contra, move céus e terras. Sorte que os veículos sabem de quem se trata.

Ontem, fez discurso no Senado exigindo que a Veja e Policarpo Júnior se explicassem. Mais uma vez, desfiou um rol de leviandades, sobretudo quando afirmou que entre a revista e Carlinhos Cachoeira há uma relação umbilical. Não há. O que há é o ódio de Collor pela Veja, responsável pelo começo de sua derrocada ao abrir páginas para Pedro Collor.

E a publicação, no seu mais recente número, fez questão de mostrar que o hoje senador caiu porque contra ele havia uma fartura de provas de conivência com o notório PC Farias. A Veja mostrou que, se deu o primeiro tiro, o restante da imprensa tratou de retalhar o corpo presidencial.

Compreensível que Collor não perdoe a revista. Mas não é natural.

Na época em que começou a descer a ladeira, eu estava na Tribuna da Imprensa. Era editor de Política, embora isso, infelizmente, não queira dizer muita coisa. O jornal era Helio Fernandes, que não aceitava sugestões de ninguém. O chefe da Redação, um certo Paulo Branco, que assumia a forma do vaso que o continha - homem de convicções elásticas e amplas. Abaixo dele, Roberto Assaf - jornalista sério, que, como eu, sofria ao ver o caminho antinatural seguido pela publicação.

A Tribuna remava contra a maré. Helio insistia em ver um golpe em marcha para tirar do poder o primeiro presidente eleito depois da ditadura. Sua compreensão dos fatos encontrava eco somente em Leonel Brizola, então governador do Estado do Rio.

Mas embora enxergassem as coisas da mesma forma, separava-os o âmago da questão: Brizola acusava o Globo, a Abril, a Folha e o Estadão de se unirem, turbinados pela força da Rede Globo, e trabalharem para cassar Collor e dar o poder a Itamar Franco, o vice - a fim de torná-lo um fantoche; Helio compreendia quase da mesma forma, porém ombreara-se a Collor por estar sendo regiamente remunerado. Foi um período próspero para a Tribuna, que recebeu enxurradas de publicidade do governo federal, mesmo sem ter relevância alguma para tanto.

Helio várias vezes veio a Brasília. Em inúmeros fins de tarde o vi adentrar a redação, apressado, terno azul marinho bem cortado, na direção da sala de Paulo Branco. O resultado, eu e Assaf já podíamos prever: uma manchete delirante. O preto viraria branco (sem trocadilho), num imenso artigo que Helio mandava publicar na primeira página. Geralmente, uma versão enlouquecida dos fatos, uma interpretação muito própria das coisas.

Nada daquilo, claro, era pelo amor à manutenção do sistema democrático.

Lembro de uma série de entrevistas, que saía sempre às segundas, como forma de dar alguma credibilidade a um governo sem credibilidade alguma como o de Collor. Figuras vergonhosas passearam pela então nobre página 5, como Nei Maranhão e outros que participavam da tropa de choque. As entrevistas vinham prontas, mas, de vez em quando, tínhamos arroubos de independência. E pautávamos alguém para ser ouvido.

Foi quando dei a ideia de saber o que pensava o historiador Nélson Werneck Sodré. Homem de sólidas convicções esquerdistas, autor do clássico A História da Imprensa no Brasil, deu uma entrevista devastadora. Não deixou nada que se salvasse sobre Collor.

Quando vi, meus olhos se arregalaram. Levei a Assaf e, juntos, levamos a Paulo Branco. A resposta veio seca, ríspida, bem ao estilo:

"Corta essa merda, porra!"

Ou seja, censura. Falar em censura na redação da Tribuna, que Helio fazia questão de alardear que jamais se curvara aos mandos do generalato de anos antes... Era a piada pronta. E de péssimo gosto.

O que saiu foi um arremedo de entrevista. Fiz uma imensa ginástica para publicar "aquilo", com pontos apenas leves da crítica devastadora que fazia ao governo Collor. Me revoltou e revoltou ao repórter que a fizera. Que na segunda-feira, quando cheguei na redação, me disse:

"Fabio, vou avisar ao Nélson Werneck. Não quero ter nada com isso!"

"Beleza, avise sim. Nem eu quero ter coisa alguma."

Ele ligou para o historiador, que, claro, ficou indignado. Não vira a entrevista, mas como tinha o telefone de Helio, procurou-o. E até onde sei, passou-lhe uma descompostura.

Na sequência, dispara sala afora o sempre gentil e afável Paulo Branco.

"Fabio, quem foi o filho da puta que ligou para o Nélson? Ele encheu os ouvidos do Helio, que está puto e me deu um esporro! Vamos ter de publicar a porra da entrevista de novo, com as partes que ficaram fora! Puta que pariu! Caralho!"

Toda essa peculiar linguagem ecoou pela grande, mas pouco povoada, redação da Tribuna.

O repórter quis reponder ao "filho da puta" como fora classificado, mas consegui que ficasse quieto. O importante era que a entrevista sairia de novo.

Minutos depois, volta Paulo Branco:

"Fabio, põe só o que ficou de fora dessa porra! E mete um título assim: 'O pensamento de Nélson Werneck Sodré'."

Tentei ponderar até com alguma veemência, mas...

"Você gosta de trabalhar aqui? Então põe essa merda como mandei!"

Era o ridículo do ridículo. Um jornalismo ridículo, protagonizado por gente ridícula, que ridicularizava um jornal por causa de um presidente ridículo.

É esse, em suma, o senador e ex-presidente que pretende colocar a faca no peito da Veja.

Ridículo.

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