A presença da blogueira Yoani Sanchez no Brasil está servindo para o retorno de um debate interessante: sobre a liberdade de expressão. Ouvi, num programa da TV paga, hoje de manhã, alguém dizer que os protestos que ela vem enfrentando desde que aqui chegou são uma demonstração, em miniatura, dos gestos que deram contorno ao fascismo e ao nazismo. Trata-se, evidentemente, de um imenso exagero.
O máximo que vejo, da parte desses manifestantes, é falta de educação, deselegância, burrice, indigência intelectual. Mais nada. Se vamos falar de direito de expressão, temos de tornar patente que a turma que foi fazer barulho contra a cubana o exerce plenamente. A permissão de criticar, seja em que tom for, é absolutamente legítima no Brasil. E para dirimir dúvidas causadas por excessos existe a Justiça (o que vem daí é outra questão; tratemos do Judiciário depois).
A própria Yoani - para mim uma escritora modesta, mas que graças à ditadura castrista foi elevada ao grau de guerreira da liberdade por alguns apressados e de vendilhã da pátria por alguns desinformados - foi a primeira a dizer que entendia os protestos. Concordo com ela: se queremos ter liberdade, os contrários devem ser compreendidos. Devemos dar direito às pessoas de terem opiniões estúpidas e cometerem atos imbecis. Ou somos todos tão geniais assim que acertamos sempre?
Claro que não.
O que vem me incomodando nesta passagem da blogueira pelo país são algumas manifestações que atentam contra a liberdade de opinião da parte de quem se diz a favor dela. E nem se diga que são os manifestantes de esquerda, que não têm a menor ideia do que se passa em Cuba hoje - cuja precariedade não é somente causada pelo embargo, mas também pelo governo predatório que não quer se despedir do poder - e ainda sonham com um "socialismo moreno" que jamais vai existir.
Colocar em dúvida como Yoani vive e sobrevive era algo já esperado da parte daqueles que não têm a menor simpatia por ela. Se ela é agente da CIA, se é agente dupla do governo cubano, trata-se uma teoria conspiratória que nos remete aos tempos maniqueístas do "ame-o ou deixe-o".
O que me espanta é que jornalistas que tinham a obrigação de fazer uma análise sem paixões se aferrem a um ato (burro, é bom ressaltar) de manifestantes, que impediram a blogueira de abrir a boca. Então, nossa democracia está em risco por causa de coisas sem qualquer significância?
Ora, por favor...
Minha primeira matéria assinada, na extinta Tribuna da Imprensa, lá por 1986, foi um protesto de estudantes contra o general Vernon Walters, que voltava ao Brasil como adido de negócios dos Estados Unidos. Era o governo Reagan lá e o Sarney aqui. Vivia-se o pavor, nem tão concreto assim - hoje se vê -, de um retrocesso e da volta dos militares ao poder.
O velho general golpista, braço da inteligência americana no Brasil nos tempos do embaixador Lincoln Gordon, foi recebido por uma saraivada de ovos tão logo desembarcou para a coletiva no Hotel Glória. Ele mesmo não mandou correr atrás de ninguém; a prestimosa Polícia Militar carioca, de boca torta por ser linha auxiliar da ditadura por tanto tempo, é que saiu atrás da garotada. E como os repórteres estavam em cima, comediu-se nas borrachadas.
Resumo da confusão na Praça do Russel: cinco rapazes "encaçapados" e levados para a velha delegacia do Catete - e liberados logo em seguida. No Glória, Walters, com seu português perfeito de anos de "bons serviços" prestados à relação Brasil-EUA, dava o recado.
A ditadura não voltou; o governo Sarney não caiu. Walters retornou a Washington, os garotos para os bancos da faculdade, eu para a Tribuna e seguimos em frente. Nossa democracia, por força das vontades de vários setores (inclusive alguns militares) já ali dava sinal de alguma rigidez.
Mesmo porque, naqueles meses de planos Cruzado I e II, a disparada de preços em meio ao congelamento, e a inflação de mais de 80% no fechamento do governo, ameaçavam mais a estabilidade política do que a presença de qualquer estafeta da CIA.
Tal como Yoani. Se a moça não pode falar, impedida por manifestantes, é porque a organização do evento no mínimo não se preparou. Tivesse pedido proteção policial (um direito legítimo, sobretudo porque se trata de uma polêmica figura, que vem despertando ódios e amores desde que desembarcou em Recife), tal como no episódio de Walters, ela certamente teria o direito garantido à palavra.
(E qual é o medo de se pedir reforço de policiamento? Que caia na provocação e um protesto se torne batalha campal? Pode ser, mas já se sabia que a cubana não passaria incólume por onde quer que vá enquanto estiver no Brasil. E os promotores da sua visita estejam certos de que gestos imbecis acontecerão outras vezes.)
Manifestações violentas, por palavras ou atos, existem nas democracias, sim. Na Espanha, os desempregados vão às ruas contra as medidas do governo Rajoy. Na Grécia, servidores saem em passeata também contra medidas do governo. E na França, e em Portugal, e na Argentina. Está na essência do homem a briga, o protesto, que muitas vezes não termina bem.
Ovo da serpente? Camisas Negras de Mussolini? SA de Ernst Röhm? Pelo amor de Deus, tais comparações são a mais inaudita desonestidade intelectual. Basta reler a história.
Os Camisas ganharam poder num país fraco, com um rei débil, que abriu as portas para o regime de exceção. As SA idem, e só porque a morte do marechal Hindemburg encancarou uma porteira que já estava aberta aos nazistas. E o ovo da serpente é um bom filme de Ingmar Bergman.
Fora isso, mais nada. Nenhum abalo na democracia brasileira.
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