Jamais tive a pretensão de ser mais do que sou. Mas leiam a entrevista do historiador Carlos Fico e comparem, logo abaixo, com a análise que fiz da crise entre o governo e os militares. Respeito muito o Reynaldo Azevedo, mas seu ódio ao governo e ao PT o tem levado a exagerar nas análises, vendo coisas onde não existem.
Matéria do Globo:
Governo exagerou ao punir oficiais da reserva, diz historiador
Para Carlos Fico, militares erraram, mas é preciso serenidade
RIO - O historiador Carlos Fico, ex-integrante do projeto Memórias
Reveladas e um dos mais ativos defensores da abertura dos arquivos da
ditadura, disse que o governo exagerou na dose ao determinar punição de
militares da reserva. Para ele, a crise é um mau começo para a Comissão
da Verdade, pois assusta e afugenta os que pensavam em contribuir com
informações e documentos. Para ele, o ministro da Defesa, Celso Amorim,
deveria ter entregado o problema aos comandantes militares. Fico não
quer participar da comissão. Ele teme que o resultado leve a uma
“verdade histórica” única, a exemplo do que ocorreu com outros países
que tiveram o mesmo processo, enquanto “um historiador deve trabalhar
com o conceito de que não existe uma verdade absoluta”.
O Globo - A Comissão da Verdade conseguirá atingir o seu objetivo: a verdade?
CARLOS FICO:
A expressão não pode ser entendida como estabelecimento da verdade
oficial. O desafio da comissão é não cair em uma leitura unívoca.
Comissões da Verdade em todo o mundo acabaram produzindo um relatório,
associado a seus membros, que vira a narrativa oficial. Para os
historiadores, o conceito de verdade não é absoluto.
O senhor, como historiador com extensa produção acadêmica sobre o regime, tem vontade de atuar na comissão?
FICO:
A presença de um historiador na Comissão da Verdade é um problema. A
Associação Nacional dos Historiadores acha que devemos participar, mas
eu discordo. Não compete ao historiador entrar. Isso por conta da
definição teórica do que é verdade para o historiador. Os historiadores
podem, no máximo, colaborar com informações. Além do mais, na História
do tempo presente, não podemos nos esquecer da dimensão ético-moral. A
atrocidade cometida no período é indiscutível. Isso introduz um viés:
não se pode ter uma atitude objetiva que desconheça os assassinatos e a
tortura. Não se pode humanizar o algoz.
E quanto às
críticas que minimizam a dimensão da ditadura no Brasil, sustentando que
ela foi mais branda do que a dos países vizinhos que passaram pelo
mesmo processo?
FICO: Muitos dizem que a
ditadura brasileira não foi violenta. Eles não têm a menor ideia da
quantidade de prejuízo que ela causou. São conhecidos os casos de
mortes, desaparecimentos e tortura. Mas a ditadura militar atingiu a
vida de muitas pessoas. Quando alguém estava para ser nomeado, por
exemplo, o SNI mandava uma nota e dizia que aquele cidadão era isso e
aquilo. Essa pessoa acabava rejeitada sem jamais conhecer as razões. Há
casos em que os filhos de casais presos foram criados por outras pessoas
por anos e anos. A questão é que, além da violência, houve uma
interferência brutal da comunidade de informações no cotidiano das
pessoas.
Qual seria o melhor começo para a comissão?
FICO:
Se a Comissão da Verdade for bem conduzida, ficaria os seis primeiros
meses trabalhando com a documentação. Ela é capaz de revelar o que não
se sabe: essa ampla e violenta interferência na vida cotidiana, que é
desconhecida e importante. Há muitos documentos. O grosso desse material
é constituído do fundo do SNI, do fundo da CGI e das divisões de
Segurança e Informação. A comissão tem possibilidade de requerer
documentos.
Existe risco de crise institucional?
FICO:
Existe, por um motivo: os militares erraram, mas o governo precisa ter
serenidade. O manifesto interclubes foi uma espécie de provocação. Eles
expressaram insatisfação num tom forte. O governo conseguiu uma vitória
política: obrigar o Clube Militar a retirar o manifesto. Os militares da
reserva têm direito a se manifestar. Mas a nota que saiu depois atinge a
hierarquia e a disciplina. Diz que o Congresso pratica revanchismo
explícito, é inconsequente. Isso, os militares da reserva não poderiam
fazer. Contraria o estatuto militar. Mas, se o governo punir, um deles
vai recorrer da decisão. Pode virar um imbróglio jurídico. O STM teria
de se manifestar. O problema seria evitado se o governo, após a retirada
do manifesto e a nota de ataque ao Congresso, pedisse aos comandantes
militares que tomassem providências. Agora, ou pune e vira crise ou não
pune, e desautoriza o ministro da Defesa (Celso Amorim). Transformar a
questão em debate jurídico é receita certa para aumentar a crise.
Os clubes militares têm influência na tropa?
FICO:
Até o Golpe de 64, os clubes militares tinham uma atuação politizada.
Depois, entraram num longo período de recesso. Mas, na segunda metade
dos anos 1990, voltaram a entrar com tudo nas questões políticas. Até
então, porém, nunca houve reação do governo. A reação é novidade. É
preciso conduzir esse assunto com serenidade na relação com os
militares.
O senhor espera que a Comissão da Verdade abra caminho para punição de torturadores?
FICO:
A Lei de 1979 também inclui a autoanistia. A ministra Rosário tem
razão. Pode ser que o resultado do levantamento da comissão provoque uma
mobilização capaz de levar o Congresso a rever a anistia. É uma
hipótese bastante remota. Historicamente a sociedade tem preferido a
conciliação. Não creio que haja uma mobilização capaz de levar o
congresso a mudar a Lei da Anistia. Mas o debate em si já desencoraja os
que pensavam em contribuir. Falar em punição agora não é a melhor
estratégia para trazer o maior número de depoimentos à comissão. A crise
não é boa para o trabalho. Há uma insatisfação grande entre os
militares da reserva. Tem gente que atuou na repressão secundariamente,
como datilógrafos, que poderia ser ouvida. Esses também foram perdoados.
Meu post:
Ou é burrice ou é turrice
O governo está conduzindo erradamente o
confronto com os militares e perdendo o tanto de razão que tem nesse
episódio. Vou enumerar as lambanças num processo que já poderia estar
debelado há dias, mas que, por burrice ou turrice, só cresce de
dimensão:
1) Disse aqui que o ministro Celso
Amorim é péssimo conselheiro e vem empurrando a presidente para o
desgaste desnecessário. A decisão da crise com os militares deve, sim,
passar por ele, mas não somente por ele. Os comandantes já deveriam ter
sido chamados por Dilma a opinar faz tempo. Ela pode até não gostar da
companhia deles, mas, no cargo que ocupa, não dá para discriminar em
função de uma história do passado. A presidente é a comandante-em-chefe
das Forças Armadas e deve se comportar como tal;
2) Os militares da reserva estão
aproveitando para verbalizar uma resistência antiga a Amorim. Quando seu
nome foi considerado para assumir a Defesa, em substituição a Nelson
Jobim, a caserna torceu o nariz. Por que? Porque o tacham como um
péssimo chanceler, que ridicularizou o país ao alinhar o Brasil a tudo o
que há de mais desprezível atualmente no mundo - como a ditadura dos
Castro, em Cuba; o regime ditatorial venezuelano, apesar do verniz
democrático; a condescendência com Evo Morales, que roubou bens
brasileiros sem que fizessemos coisa alguma; e, mais grave de tudo, a
teocracia iraniana, fator de desestabilização do Oriente Médio. Ainda
que o ranço do alinhamento automático aos Estados Unidos não tenha sido
superado pelos militares da reserva, consideram que a dupla
Amorim-Samuel Pinheiro Guimarães colocou o "viés esquerdista" nas
relações exteriores acima dos interesses do país;
3) A reserva das Forças Armadas nada tem
a perder com a série de provocações. O governo tem. O discurso
sectário, ainda que justo, das ministras Maria do Rosário e Eleonora
Menicucci, já deveria ter sido amenizado pelo Palácio do Planalto faz
tempo. Os militares, como bons ferrabrás, não entendem que, como eles,
ministro tem direito a opinião (ferir a lei é que são elas, e tanto
Rosário como Eleonora não deram um único passo nessa direção). Ou seja:
em boca fechada não entra mosca;
4) Sobretudo agora que um procurador
militar (PROCURADOR MILITAR, é bom deixar bem claro) descobriu uma
brecha na Lei da Anistia para poder investigar casos rumorosos, como o
do ex-deputado Rubens Paiva e o de Stuart Angel, filho da estilista Zuzu
Angel. A matéria está no Globo de hoje; mais insuspeita, impossível. E
por onde passa um boi, passa uma boiada. Começa com dois nomes de peso e
chega àqueles cujos corpos não foram devolvidos pelos agentes da
ditadura;
5) Assim, os militares são confrontados
pela sua própria procuradoria. Isso por si só retira de elementos do
governo o papel de fomentadores dessa discussão em torno do passado;
6) A presidente precisa perceber que
está com a faca e o queijo na mão. Tem a autoridade e, sobretudo, se a
crise chegar ao ponto da sublevação, dificilmente os revoltosos terão
apoio da imprensa, como ocorreu no passado. Mas tem que evoluir para
certas coisas. Sua ausência no funeral dos mortos no incêndio da base na
Antártida foi sentida, apesar do fogo que foi apagar na disputa entre
PT e PSB pela prefeitura de Recife. A fratura eleitoral pode ser
compensada, a da contestação à autoridade não;
7) A presidente precisa entender que
está com a faca e o queijo na mão. (Não, você não lerá o item anterior.)
As Forças Armadas hoje são mal pagas e sucateadas. Está na hora de
trazer essa discussão para o rol de prioridades do governo para ajudar a
restabelecer o princípio da disciplina;
8)
A indústria bélica brasileira acaba de tomar um baque
com o cancelamento da compra de 20 Super Tucanos por uma das forças
aéreas mais poderosas do mundo, a dos Estados Unidos. É mais um prego na
autoestima do setor militar nacional, que somado à carta dos clubes
cria um caldo difícil de digerir;
9) Não existiu, como não existe, razão
para se adiar o reaparelhamento das Forças Armadas. Apesar da nossa
cultura de paz, não é de hoje que o Brasil (pela importância que
desfruta atualmente) precisa de um poderio compatível com seu status. O
poder de dissuasão não representa que vamos disparar uma corrida
armamentista no Cone Sul;
10) O governo vem acenando para o
funcionalismo que não haverá reposição salarial esse ano. Os sindicatos
deram início à mobilização e os militares da ativa, embora não possam se
associar ou se manifestar, são parte interessada no processo. Se o
Palácio disser apenas que não tem como pagar, mostra má vontade. Se
apresentar cronograma e disposição para conversar, debela um calendário
de greves. E cassa um discurso cristalizado dos militares, de que não
são vistos com respeito e consideração.
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