segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Os pecados da profundidade

Sábado foi Hebe Camargo. Domingo, Autran Dourado. Segunda, Eric Hobsbawn.

Aos olhos do grande público, Hebe foi uma perda incomensurável. Não discuto a importância da apresentadora para a TV brasileira, que foi grande. Não assisti jamais seus programas porque, pelo menos para mim, pouco significavam. Aqui, quando digo "jamais", é "jamais" mesmo.

Autran trouxe para o Brasil o pecado da alma mineira
Aos olhos do grande público, Autran e Eric são verdadeiros desconhecidos. Dois Joões Ninguém. Seus obituários nos jornais não lhes farão justiça. Estarão imprensados embaixo e alguma notícia ou de editais do governo. Serão tidos como meros intelectuais, que escreveram livros que pouca gente (ou nem tão pouca assim, sei lá) leu.

Hobsbawm: um dos ícones do pensamento de esquerda
Autran foi importantíssimo para a literatura brasileira. Tinha um texto anguloso, complexo. "Os Sinos da Agonia", seu romance mais conhecido, é difícil de ser entendido. Quem pensa que Minas legou ao Brasil apenas Drummond, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Lúcio Cardoso ou Guimarães Rosa comete um terrível lapso.

Mas Autran era assim mesmo: um caso à parte. Lembro de uma entrevista que vi com ele na qual contou sua experiência com drogas, sobretudo as alucinógenas. Disse não ter gostado, mas confessou ter encontrado um lado bom, o de perder o controle sobre si mesmo. Num mundo e numa cultura em que controle é regra e aspecto fundamental das convivências, achei curiosa a postura. Uma liberdade que talvez poucos tenham a coragem de ter, a de ser levado pelas circunstâncias.


Hebe simbolizava o povão
Era um homem de sólidas convicções esquerdistas. Tinha muito em comum com o historiador inglês Eric Hobsbawn, cujo livro mais conhecido no Brasil, "A Era dos Extremos - O Breve Século XX, 1914-1991", é um ensaio coerente sobre um mundo sem um pensamento político que se contraponha à corrente hegemônica pós-queda da União Soviética e do Muro de Berlim.

Eric não tece loas ao socialismo. Ao contrário, reconhece-lhe os erros de conduta. Mas observa que foi justamente esse confronto de ideias que obrigou o capitalismo a realizar uma severa correção de rota. A agravante, como ressalta, é que os desvios (supostamente para melhor) do capitalismo podem ser abandonados a qualquer momento, já que não existe mais um sistema que possa confrontá-lo.

Quando foi lançado (se minha memória não falha, há mais de uma década), a China ensaiava os primeiros passos dessa revolução silenciosa que protagoniza atualmente. Eric jamais enxergou em Cuba (pela falta de recursos naturais) ou na Coreia do Norte (pela ausência de relação com o restante do mundo) os vetores de substituição dos sistemas políticos por um produto híbrido, tal como Pequim hoje dirige com absoluto sucesso.

Eric também era preciso ao afirmar que as ditaduras são sempre palatáveis desde que a população seja atendida em suas reivindicações. Não bastaria, assim, que o povo tivesse sanadas necessidades básicas, mas que pudesse ter acesso àquilo que as sociedades de consumo oferecem. Ele aponta como sendo exatamente este o caminho do fracasso do socialismo: a população tem casa, alimentação, saúde, educação, mas não tem um sapato decente para calçar, um bom carro para dirigir ou um aparelho de TV do último tipo.

O erro do socialismo foi desprezar o supérfluo, de onde vêm os prazeres da vida. De nada adianta ter tecnologia para criar um caça de guerra que faça curvas em 90º e seu piloto não tenha em casa um forno de microondas. A China custou, mas percebeu isso. E está de pé, como vaticinou Hobsbawn.

Onde entra Hebe Camargo nisso tudo aqui? Não entra, não tem espaço para ela. Não tinha convicções políticas, tampouco se dedicava a análises históricas. Mesmo porque, não era sua intenção. Não era de direita, nem de esquerda, sobretudo não era paga para isso. Quando tentava ensaiar algo do gênero, falava aquilo que o povão compreendia. Nada muito intenso ou profundo.

Daí tanta popularidade.

Que, claro, nem Autran e nem Eric tinham.



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