sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Gelada é para quem tem cotovelo alisado pelo balcão do bar

Poderia dizer que me antecipei a certas coisas, mas pareceria cabotino. Quando ninguém falava em relógios, eu já me interessava por eles. Quando a maioria se empuçava de Skol, eu já procurava as cervejas de qualidade. E é sobre elas que vou (voltar) a falar a partir do próximo parágrafo.

Dias atrás, ouvi o comentarista de vinhos da CBN dizer que cerveja é "bebida de boteco". O que pode parecer um elogio era o mais puro desprezo devotado por alguém que considera que, fora do vinho, não há salvação. Acredita seguramente, convictamente, que o restante é poção para a embriaguez.

O princípio de toda e qualquer bebida é esse mesmo: a embriaguez, a perda do controle. Na Antiguidade, o vinho estava associado às festas com sexo. Baco é o deus romano e bacanal é um sinônimo quase esquecido para transas grupais. O similar nacional é o adjetivo suruba, cuja origem da palavra parece ser indígena.

Os índios, daqui e das Américas, têm vários tipos de beberagens para tirá-los "do sério". As explicações são as conexões divinas e com o desconhecido, o que, voltando na história de Baco, dá no mesmo. Todos saem dos seus estados de consciência e em nome de algo incontrolável passam a se relacionar com o parceiro ou parceira ao lado.

A cerveja tem a mesma origem do vinho. São fermentados, embora de elementos diferentes. Vêm dos mesmos lugares e dos mesmos povos. No século 20, porém, começaram a trilhar caminhos diferentes: um frequentava salões, outra era relegada às tabernas.

Enquanto o vinho era razão de curiosidade, a cerveja era motivo de desprezo. Muitas bebidas a ultrapassaram em interesse e finesse, como o uísque, por exemplo. No Brasil, sempre foi a válvula de escape do Zé Povinho. Enquanto a cachaça era enxergada como o remédio dos mendigos, a cerveja voltava-se para o cidadão de baixa renda.

Cerva, gelada, loura, breja, brahma - mesmo sendo Antarctica. A maior parte daquelas que está em disponibilidade é de má qualidade. Mas descobrimos isso muito tempo depois. Poucos se lembram, mas quem há de atestar se a falecida Brahma Porter era boa? Uma porter fabricada no Brasil. Pois é, e nem foi por uma microcervejaria.

Ou a Hanseática... (também da Brahma e cujo nome se refere diretamente à Alemanha.)

A Caracu ainda é vista somente como um afrodisíaco, cuja combinação com ovo de codorna é infalível quando o assunto é satisfazer o mulherio. Uma sweet stout honesta, talvez a última de uma época em que o pedreiro a tomava para dar uma reforçada na marmita de arroz, feijão, ovo, farinha e carne magra.

"Eurico, vai no armazém do Lopes pegar uma Barriguda pra mim". Era assim que meu avô, chofer de praça e gesseiro, se dirigia diariamente ao meu pai na hora do almoço - geralmente algum item da baixa gastronomia preparado pela minha avó, tal como um arroz com feijão gordo mais costela de vaca e aipim.

Barriguda era uma das cervejas do grupo Black Princess, cuja fábrica ficava na região da Mangueira, no Rio. O nome verdadeiro era Cerveja Sul-Americana, mas, por causa do formato da garrafa, também atendia pelo nome de Barriguda.

A Skol, quando apareceu, pretendia ser uma marca alternativa à Brahma e à Antarctica, que dominavam, respectivamente, os mercados do Rio e de São Paulo. Tanto que não chegou apenas cerveja; trouxe com ela uma linha de refrigerantes, do guaraná à soda limonada. Antes de tudo virar Ambev e depois ImBev, a Skol chegou a ser considerada uma boa cerveja entre as populares.

A Brahma fez de tudo para dominar o mercado de ponta a ponta. Lançou marcas alternativas, como a Malt 90, mais conhecida como Malt Nojenta. E nem era tão nojenta assim. A Brahma vinha perdendo qualidade seguidamente, até que os cariocas começaram a importar a Antarctica. No começo dos 80, conhecedor de cerveja era aquele que só tomava Antarctica.

Em Petrópolis, a Bohemia era uma espécie de segredo bem guardado. Uma Pilsen como uma Pilsen deve ser. Talvez já naquela época não chegasse ao nível de uma Urquell ou uma Búdvar, mas na memória afetiva de todos a Bohemia era uma cerveja especialíssima. Feita com a água da Serra, pura e saborosa. Mas como voltar no tempo e conferir se isso era verdade?

Dias atrás, conversando com meu primo Ricardo Grechi (com um C só, por erro do escrevente do cartório), ele lembrou de um final de ano no qual um velho tanque de roupas feito em concreto, que ficava junto à casa do empregados, esteve repleto até a boca de Bohemias estupidamente geladas. Embora fosse verão, Petrópolis estava friazinha.

Eram vários homens e eu entrando na maioridade. Tomamos muitas cervejas, apreciando a delícia de estar geladíssima e agradabilíssima, combinando com a temperatura amena. Ele jura que aquela era outra cerveja, bem distinta da Bohemia atual. Eu não posso dizer o mesmo. Não apenas porque não me lembro, mas porque também as conversas e os tira-gostos estavam igualmente sensacionais. Na minha memória de pós-adolescente, ficamos uma tarde inteira ali, debaixo de um barracão de madeira, jogando papo fora animadamente.

Ninguém fez degustação de coisa alguma. Como, então, comparar tempos atuais com idos?

Hoje, todos escrevem sobre cerveja, a conhecem como se fosse aquela empregada com que todos "se divertem". Detesto essa intimidade. Quando falam, falam sempre nas mesmas e com um desconhecimento de causa espantoso - mas que aos olhos do leitor comum parecem palavras de catedrático. Jamais provaram uma dunkel, não sabem o que é uma gueuze, acham lambic uma corruptela de alambique.

Poderia deixar eles falarem. Mas é que ler bobagem me irrita. Ainda mais bobagem com jeito de tese de doutorado. Fizessem um mínimo de pesquisa, lessem algo que não seja texto de internet, aprenderiam algo. Só que...

A preguiça é contagiosa.

Talvez quando estiverem cantando em verso e prosa as maravilhas do rum, as diferenças entre os tipos caribenhos, os aromas deixados pelo solo e pelos tipos de cana, escrevam menos besteiras, procurem mais, provem mais.

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