quarta-feira, 16 de maio de 2012

Vozes, mãos, braços

Tomei um tapa na cara sem mesmo saber de onde viera. Ainda aturdido com a queda, percebi duas coisas: que a cabeça sangrava e que algo com um forte cheiro de pólvora me pressionava a fronte. A mão, grossa e cheia de calos, fez um exercício que contraria a física ao tentar puxar-me o corpo somente pela cabeça. A dor foi insuportável.

O olho esquerdo mal abria. O sangue, grosso como melaço, o cobria. O pouco que via, pois o óculos voara longe e se perdera, era um gradil. Um vulto amarronzado abria-me uma portinhola, por onde alguém berrava aos meus ouvidos que deveria passar. O arremate foi um violento empurrão no meio das costas por um pé. Certamente a camisa guardara a marca do sapato.

O cheiro dentro era insuportável. Não se via nada, a  não ser pequenas nesgas de luz que vinham das frestas na lateral daquele cofre. O ar era impossível respirar. Misturava suor com sangue, fezes e urina, e subia pela garganta, deixando um gosto ruim na boca. Comecei a socar a lataria. O cofre sacolejava. Foi quando vi que havia mais alguém naquela escuridão. Mas não falava, não reagia.

Perdi a noção do tempo. Passei a mão no pulso e nem senti que o relógio me fora retirado. Presente do pai, de formatura. Onde estava? Era em ouro rosa. O velho morrera meses antes. O cigarro o matou. Não tive como ir ao velório ou ao sepultamento. Chorei durante toda a noite no apartamento com os quatro colegas de faculdade. Alguém, no meio daquela agonia, sugeriu comprar uma garrafa de Royal Label para que enchesse a cara e dormisse. A amiga, porém, foi contra. Levou-me para o quarto e tentou me acalmar com carícias. No meio da noite, conseguimos.

Ouvi o estampido e me assustei. É a portinhola se abrindo. A claridade invade o cofre e me cega. Duas mãos, não se sabe se as mesmas, me puxam para fora com brutalidade. No arranco, piso sobre a outra pessoa, que apenas geme. Enfio a cabeça no alto da portinhola. Outra dor lancinante.

"Olha a cabeça, arrombado!", grita um dos braços.

"E o outro?", pergunta uma segunda voz.

"Deixa essa porra aí. Acho que tá morta".

Ouvi dos mais velhos que era preferível ser morto a cair. A casa tinha caído. Uma mão me guia pelo ombro e vai indicando o caminho. Tinha sido quem? Alguém de dentro? A mulher do médico que passava os dias em casa? O entregador da mercearia, que sempre que ia entregar compras ficava pescoçando para dentro do apartamento? O faxineiro que trabalhava vestido com a camisa do Botafogo?

Alguém deu o serviço. Os mais velhos diziam sempre que, se pudessem, faziam como os nazistas capturados: morderiam cápsulas de cianureto. Onde arranjar capsulas de cianureto? A ideia não era má.

"Olha o degrau. Outro..." Essa já era uma terceira voz. Ou seria uma quarta?

A mão continua no ombro, amigável. A luz, de repente, mudou. Passou para algo lusco-fusco, nem claro, nem escuro. Havia janelas (ou portas?) ao longe. Dava para ver pela claridade que lhes assumia o formato.

"Para. Senta aí." A mão me empurrou para baixo, fazendo-me abaixar. Apalpei a parede e percebi uma estutura de madeira. Um banco. A voz tomou-me uma das mãos. Algemou-me a um pedaço da lateral de onde sentara.

"Espera aí", ordenou a voz. E saiu. Ora, como se fosse possível fugir. O banco parecia de madeira maciça, sólido, pesado. Era liso e plano. Senti a textura do assento com a mão esquerda, que ficara livre. Era polido, macio, aveludado.

Alguém retorna. Não era a mesma voz.

"Levante-se!"

Como?

"Jair, tira essa porra dessa algema".

"Fica quieto". Era a mesma voz que me conduzira até ali. Passei a mão no pulso, que ficara marcado. A algema estava arrochada demais. A região estava meio dormente pela falta de circulação sanguínea.

"Entra". Era a segunda voz.

"Senta!"

Onde?

"Não tá vendo a cadeira, porra?", exasperou-se a segunda voz. "Você é cego?"

Sou, de certa forma. Tenho miopia acentuada. Na bordoada, na rua, meu óculos voou longe. Não estou enxergando coisa alguma.

"Melhor assim. Aqui você não precisa ver nada. Aqui o importante é falar".

Sentei-me na cadeira. Uma das pernas estava bamba. Tive medo de cair. Procurei fazer o menos possível de movimento para não correr o risco. Coloquei as mãos sobre as coxas, femininamente. Era uma forma de me equilibrar e não tomar um tombo.

Enxergava (ou melhor, via apenas vultos) somente com o olho direito. Não notei, mas ao lado, mais ao fundo, havia alguém. A voz que me conduzira cruzou a mesa quadrada que tinha em frente e sentou-se. A cadeira rangeu dolorosamente. O segundo vulto tinha uma respiração pesada. A voz abriu o que pareceu uma pasta, dessas de arquivo. Tirou duas folhas, que farfalharam.

Quando começou a ler, não havia dúvidas. Estava tudo ali. Nome, sobrenome, codinome, nome de amigos, codinome de amigos, funções, datas, horários, locais, fatos. Gelei. Conhecia todos, sabia de tudo, vivera ou ouvira boa parte daquilo que me era relatado.

"Isso aqui é um tribunal?" perguntei.

A pessoa que estava atrás levantou-se. Parecia ser enorme. Deu-me uma cutelada no trapézio. A dor subiu à cabeça e desceu. Entortei-me, passei a mão esquerda sobre o ombro tentando fazer sarar. Bobagem. A face, contrita, apertava os olhos que nada enxergavam. Tive vontade de chorar.

"Fale somente quando for pedido", disse a voz do outro lado da mesa. "Senão, a diversão vai começar aqui mesmo".

Falar o quê?

"O senhor confirma....", e começou. Não confirmo nada, não sei do que estão falando, não conheço, não vi, não sei de nada. Vocês estão cometendo um erro. Esse não sou eu.

"Ah, não?"

Nova cutelada. Dessa vez não ouvi o sujeito de trás se levantar. A negativa continuou. Perdi os sentidos. Difícil saber se foi um "telefone" ou um tapa no pé do ouvido. A cabeça zumbia. Acho que caí no chão. Mãos desconhecidas me levantaram. Um cheiro insuportável me invadiu o nariz.

Amônia.

Uma mão desconhecida abriu-me a pupila, jogando um facho de luz. Fez o mesmo com o olho esquerdo, inchado. Nessa hora doeu. Tive uma reação com a cabeça, querendo fugir da mão.

"Pode prosseguir. Mas acho que é fraco".

"Vai aguentar a operação?"

"Não sei. Vamos tentar".

A mesma ladainha recomeçou. Você é, você viu, você conhece, você estava... Não, jamais, em tempo algum.

"Se não falar por bem, vai por mal", disse a voz que vinha de trás, bem perto do ouvido. Emanava um hálito estranho... Café! Café naquilo ali?  Imaginei o cheiro do grão recém-moído, como aquele que comprava no armazém do Galdino. Um quilo dava para a semana. Era um café forte, gostoso. Galdino era um sujeito honesto. Nunca errava no peso. A balança estava sempre regulada. O cheiro do café impregnava a lojinha. Brincava com o gato que se deitava sobre a resma de papel para embrulho. Chiquinho.

"Se não falar por bem...", repetiu a voz em frente.

Falar o quê? Não tinha jeito de dedo-duro. Os mais velhos me ensinaram a fazer pouco caso de quem caía e abria a boca. Lembrava sempre daquela cena em O Assalto ao Trem Pagador, quando o primo de Tião Medonho é usado como isca pela polícia para pegá-lo. Quem era mesmo aquele ator, que fazia o primo? Não lembrava o nome. Mas, engraçado, achava que ele tinha cara de dedo-duro.

Dizia-se que Virgílio, quando caiu, deu todo o serviço. Difícil provar, mas tinha tudo a ver. Logo em seguida um monte de gente também caiu. Dora, Macedo, Guima, Guilherme, Tonico, Chaleira, Ronaldo, Ângelo... Dizia-se que Guima e Chaleira tinham morrido. Ninguém voltou a ser visto.

"Não tenho nada a dizer. Não sei porra nenhuma".

Pegaram-me pelos braços. Eram duas pessoas.

"Leva esse merda. Opera ele para ele ficar fino".

"Vai dar uma de machão, filho da puta? Vamos te comer o cu agora". Essa voz até então não se apresentara. Não, não era um prazer conhecê-la.

"Ih, mais um?", perguntou alguém que passou pelo trio, naquele caminho cinzento.

"Vamos tirar o cabaço dele", respondeu a mesma voz que não se apresentara. O outro, que segurava o braço esquerdo, não se manifestara.

À medida que iam avançando, a luz natural desaparecia. Um lance de escada, dois, três. Um deles tropeça e quase cai:

"Porra..."

Lâmpadas incandescentes no alto, amarelas, fracas. 15 watts, 20 se tanto. Fraquinhas. O corredor era longo. Uma porta, parecia de metal.

"Abre doutor, abre..."

"Mais um?"

"Mais um. Hemorróidas. Vai operar?"

"Trouxeram a papelada?"

"O Jair está trazendo".

"Tem que ser rápido. Hoje tenho compromisso."

"Nós também. Quero ficar nessa porra até tarde, não". Era a voz que segurou o braço direito.

"Olha aí, chegou. Tira a roupa dele?"

"Pra quê, vai com roupa mesmo. O Tavares está lá em cima? Se estiver, ô Jair, diz para ele descer. Não quero que esse filho da puta desmaie no começo da operação".

"É, ele é meio fraco. Lá em cima já deu uma apagada..."

"Amarra ele. Fuma?"

Se eu fumava? Durante certo tempo... As mesmas perguntas.

"Vou começar de leve..." Abriu as pálpebras e enfiou o toco do cigarro.

Um tapa, dois. Senti que faltava algo dentro da boca. Foi depois de um soco. Baba de sangue escorria pelo peito.

"Levanta esse puto".

Afogamento. Uma, duas, três... sete, oito... A água fedia. Dei com o queixo na borda do tonel e mordi a língua. Vozes berravam no meu ouvido. Eram todas iguais. Estava surdo. Lá longe, ouvi o doutor dizer.

"Hoje não vai, mas amanhã ele canta. Leva. Tá dando minha hora".

Murmúrios de concordância.

Mãos me pegam pelo sovaco. Não me aguentava em pé. Senti um cheiro forte de fezes. Eu me cagara. Percebi ao sentir algo quente escorrendo pelas minhas pernas.

"Puta... Se cagou!", disse um.

"Que se foda. Vai dormir em cima da merda".

Eu tinha nojo de dedos-duros. Eram como o primo do Tião Medonho, no filme.

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