segunda-feira, 9 de abril de 2012

Um jornal assassinado pela loucura

Robertão Porto é um amigo do passado. Tem grandes e gloriosas recordações, histórias engraçadíssimas, seja do jornalismo ou do futebol, com direito a algumas passagens pela política (seu pai foi um eminente advogado no Rio dos anos 40 e 50). Robertão é desses homens que guarda a memória numa caixa machetada com madeira fina e detalhes em ouro maciço. Tudo o que ele escreve é rico. Historiador nato, brilhante contista de episódios (verdadeiros ou não), é uma figura a quem admiro como pai e respeito como irmão mais velho.

Acho apenas que Robertão tem uma visão romanceada do que foi a Tribuna da Imprensa. Não importa, tem esse direito.

Mas eu não. Impossível negar a tragédia, o ocaso, o desespero, o desrespeito, a tristeza. Vi e vivi tudo de muito perto. Não queria, mas ninguém brinca com o destino. Tenho compromisso com minha história e, sobretudo, devo repeitar as dores que senti.

Lastimo muito o que vou contar a seguir.

A Tribuna fechou as portas pela incompetência de seu dono, Helio Fernandes, que tinha uma desconfiança patológica, esquizofrênica, de todos os que o cercavam. E dentre esses, não diferenciava quem era bom ou mau.

Geralmente trocava as estações: elogiava e endossava os sem caráter, os descompromissados, os oportunistas; e criticava e desprezava os honestos, os precavidos, os prudentes, os desinteressados.

A Tribuna naufragou por causa de uma briga intestina entre Helio e seu filho mais velho, Helinho. (Os demais, sobretudo Rodolfo Fernandes, que foi diretor de redação de O Globo, não tinham qualquer relação profissional com o jornal.) Difícil dizer qual dos dois foi mais nocivo.

As acusações que se faziam eram de envergonhar qualquer um. Helinho, com quem convivi mais estreitamente, tinha uma gaveta na sala vizinham à minha na qual guardava os bilhetes mais terríveis que recebia do pai. Repito: DO PAI.

Momentaneamente? Volta quando? Perguntem a Helio
Não defendo Helinho. Nem poderia, apesar de já ter morrido. Explorou pessoas, esgotou o jornal, fez dinheiro escondido; tomou, usurpou. Mas as críticas que recebia de Helio eram absurdamente torpes. Com ou sem razão, Helio jamais teve coragem para afastá-lo. Preferia escrever-lhe monstruosidades capazes de chocar qualquer um que as lesse.

Testemunhei várias discussões entre eles, ou na sala ao lado, ou pelo telefone, quando se ouvia somente a voz de um ou de outro. Impressionava não somente o nível de beligerância, mas o desprezo que se devotavam. Ingredientes externos ajudavam a piorar uma relação que, creio, àquela altura tinha se tornado de puro ódio.

Um dia Helinho se encheu de ser escorraçado. Deixou a Tribuna. Continuava indo ao prédio da Rua do Lavradio 98 e trancava-se no grupo de escritórios que mantinha de frente para a rua, cuja porta era junto ao final da escada, no primeiro andar. Cuidava apenas dos negócios pessoais, que se misturavam aos do jornal. Uma relação promíscua e suspeita, para dizer o mínimo.

Por que trago algo dessa natureza à tona? Primeiro, porque trabalhei na Tribuna de 1990 a 2007, ocupando as mais várias funções, até chegar a diretor de Redação, cargo que ocupei por 10 anos.

(Jamais tive meu nome no expediente porque os Fernandes não permitiam. Antes de mim, estiveram na função, cronológicamente: Roberto Assaf, Roberto Porto, Mário Gustavo Rolla, Argemiro Ferreira, Paulo Sérgio Souza, José Trajano, Ricardo Gontijo e Tarso de Castro. Depois de mim, Elifas Levi. Todos jornalistas de primeiro time.)

Segundo, porque fui tratado com um desrespeito que jamais voltei a encontrar. Os compromisso com os funcionários da Tribuna atrasando e eu ouvindo de Helio Fernandes, pelo telefone ou pessoalmente, suas justificativas.

"Num jornal, tudo é prioridade: papel, tinta, gente, distribuidor...", repetia, como um mantra, para explicar hiatos salariais que, por vezes, alcançavam 50 dias.

"Não, sr. Helio. A prioridade é sempre o pessoal. Sem ele, não há jornal", devolvia-lhe, já irritado com a lenga-lenga.

"Eu posso fazer esse jornal sozinho. Eu e mais dois. Essa redação tem gente demais", disparava, já levantando do sofá encardido que ficava na minha sala e saindo, redação afora, sob os olhares fuzilantes das pessoas que levavam aquele imenso e pesado cadáver.

Certa tarde, Helio resolveu enfrentar os jornalistas. Havia mais uma greve em marcha, que fazia tempo não conseguia segurar (e ele ainda me acusava de incitá-las; como se fosse preciso). Não lembro exatamente o que disse, mas foi algo assim para uma plateia de umas 30 furiosas pessoas.

"Vocês têm todo direito de fazer queixa na Justiça do Trabalho. Inclusive, eu apóio a ida de vocês até lá. Aproveitem e matem o jornal...".

"O senhor só pode estar de sacanagem!", esbravejou uma ex-colega, indignada com o fato de alguém que é devedor ainda acreditar que tem alguma razão.

O jornal, àquela altura, estava morto. Helio já sabia disso, tanto que o enterrou como indigente (simplesmente baixou as portas, sem pedir falência ou concordata, deixando dezenas de pessoas na penúria e devendo-lhes os direitos trabalhistas mínimos). A Tribuna "física", de papel, morreu pouco mais de um ano depois desse bate-boca.

Ele deu as costas e foi embora, deixando para trás quem queria e quem não queria ouvi-lo. Ali, percebi que não havia mais jeito. Era questão de tempo.

Helio ainda tentou alimentar uma farsa, atribuindo ao ministro Joaquim Barbosa, do Supremo, a culpa do fechamento por não ter sido paga uma indenização que era devida ao jornal. Ato final de uma série de absurdos, abusos e ataques sem consistência construídos pelo próprio Helio.

Nesse tempo, já vinha negociando com meu amigo Jorge Eduardo Antunes a vinda para Brasília. Assim que ele deu o sinal verde, pedi demissão e hoje discuto na Justiça a dívida que a Tribuna tem comigo.

No dia da minha despedida, uma ensolarada segunda-feira, Helio veio falar comigo. A temperatura da crise financeira do jornal ardia alta.

"Fez a coluna de amanhã?", me perguntou, como se não soubesse que, na sexta-feira anterior, eu me demitira.

(Naquela época, fazia a coluna "Fato do dia", que ia na página 2. Jamais recebi um único e escasso tostão por isso. Assumi obrigado, porque Helio PROIBIRA Helinho de fazê-la - achava que o filho ganhava dinheiro com o espaço. Ficou comigo, que toquei a contragosto, primeiro sozinho e depois ajudado pela jornalista Carla Giffoni. Quando peguei simpatia, mesmo às segundas-feiras, na minha folga [trabalhava todos os domingos e feriados], fazia questão de mandá-la de casa. E ainda era obrigado a conviver com as críticas de Helio, que muitas vezes dizia que "estava fraca" e mandava colocar sobras de algo que escrevera.)

"Sr. Helio, me desliguei do jornal sexta-feira passada. A última coluna que fiz saiu hoje. Vim aqui apenas me despedir e arrumar as gavetas".

Levantou-se do sofá encardido, estendeu-me a mão fina e mole, desejou-me um boa sorte sem vontade ou sinceridade. E saiu da sala, como de outras vezes. Tinha de "fazer" a coluna da página 2 na salinha onde outrora funcionara a distribuição do jornal, repleta de edições antigas que mandara o bravo Joaquim Marques, o arquivista, selecionar e empilhar para ele.

Quer dizer: Helio realmente podia fechar um jornal sozinho. Qualidade é algo que não faz parte desse julgamento.

Vim para Brasília sem ver meus dois últimos salários e parte do 13º do ano anterior - por eles discuto na Justiça há cinco anos, incluindo aí um roubo monstruoso do meu FGTS praticado pelo jornal. O advogado que contratei, um rapaz que vi crescer e se formar, vem a ser enteado do meu amigo Robertão.

Não, Roberto. Helio jamais o chamaria para comandar a Tribuna novamente. Não porque te falte competência e nem porque ele não tivesse vontade. Não chamaria porque Helio resolveu matar a Tribuna.

Miseravalmente.

(Dedico esse artigo às seguintes pessoas: Romeu, Cristiana, Luís Carlos, Silas, Ari, Elifas, Ivana, Dona Neide, Dona Nice, Paulinho, Bibi, Amaro, Antônio, Elaine, Vítor, Débora, Jorge Reis, Burrinho, Carla, Amaury e a outras pessoas cujos nomes não lembro agora. Exceto por alguns desses, que saíram antes ou morreram, quase todos viram o sopro final de vida da Tribuna.)

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