quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Coincidências demais

Aconteceu comigo há muitos anos.
Todo final de tarde, eu e mais um grupo de amigos íamos para a Praia de Icaraí jogar bola. Eu mesmo, que nunca fui grande coisa, tornei-me um bom ponta direita e um bom goleiro devido à insistência. Claro que isso me custou um ano de colégio: a reprovação veio implacável justamente para mim que, de todos, era o pior aluno; o que tinha mais dificuldades de aprender as aulas do sisudo Instituto Abel, de Niterói.
Entre nós existia um rapaz, Marcos Damião. Não sei que fim levou porque, depois do episódio que vou narrar, trocamos uns tapas e rompemos ali uma amizade sempre marcada pela rivalidade.
(Talvez não fosse amizade. Mas o fato é que ele sempre foi recebido na minha casa e eu na dele, apesar dos ressentimentos que a mãe de Damião fazia questão de externar. Não sei se eram comigo. Talvez fossem com o mundo. O pai, Seu Enio, coronel aposentado da PM, era uma doce figura pelo que me lembro.)
Naquele dia, na praia, estava tudo escrito que terminaria.
Eu e Damião tínhamos um colega em comum, Felipe, que além de bom jogador era um tremendo gozador. O ruivinho batia um bolão e todos o queriam no time. Naquele dia ele estava no meu. Não lembro se por opção ou por vontade própria, fui para o gol.
A bola rolou. Damião não era mau jogador, mas não era o craque que pensava ser. Era voluntarioso, tinha disposição, mas sua técnica não era das mais apuradas. Ainda assim fazia o gênero "chato" na areia: aquele que só é marcável quando se joga duro, muito duro. Quase na covardia.
Damião estava inspirado naquela tarde, comendo a bola - como diz a gíria. A certa altura, alguém rola perfeita para ele. Ele ajeita com o lado de dentro do pé direito e escolhe o ângulo. Ia lá certinha não fosse por um detalhe: eu.
Naquele dia eu também estava inspirado.
Voei na bola e consegui espalmá-la. Uma "ponte" dessas de Canal 100. A molecada, claro, veio me abraçar. O gol de Damião era certo, eu impedira. Felipe era um dos mais eufóricos.
Percebi, porém, que o rosto de Damião se fechara. Não gostou da minha defesa. Lembro agora que ele tinha pouco espírito esportivo.
A bola continuou rolando. Numa outra jogada, a bola vem da linha de fundo, cruzada rasteira na área. Me antecipo errado e passa por baixo de mim. Atrás, esperando limpinha, quem? Damião! O gol escancarado. Deve ter falado dentro de si mesmo:
"Agora eu me consagro!"
Eis que... Eis que algo aconteceu. Na praia, o piso é irregular. A bola pode ter dado uma quicadinha de nada, suficiente para mudar a posição da batida. Damião, que em vez de encher o pé quis arrematá-la de lado, foi vítima da empáfia, do desejo bobo de vingança numa brincadeira de adolescentes.
Quando bateu na bola, ela subiu. Subiu e explodiu no travessão! E nem deu a ele a chance de pegar o rebote. Atônito com o erro, incrédulo com tamanho capricho, ficou parado vendo a criança voltar para o centro da área, até que fosse rifada por alguém.
Começou a encarnação. Felipe estava às gargalhadas. Eu também não pude me conter - e aproveitei para tripudiar, já que era a segunda que perdia para mim, no mesmo jogo, em questão de minutos. O restante do pessoal, com maior ou menor peso, fez de Damião o esparro da tarde. 
Não se viu mais Damião "em campo" naquele dia.
Comecinho da noite, fomos todos para uma vila em frente ao prédio de Damião, na Otávio Carneiro. Ali batíamos papo, quando recomeçou a encarnação. De todos ouviu poucas e boas, mas comigo resolveu encrespar. Damião levantou-se, aproveitou que eu estava sentado e chutou minha perna.
Claro, o tempo fechou. Dei-lhe uns tabefes, levei outros. Lembro de uma vizinha gritar, enquanto nos estapeávamos:
"Esse menino vive arrumando confusão".
O menino era Damião.
Eu não sabia disso.
Difícil foi, depois do arranca-rabo, subir até a casa dele para pegar meu time de botão. Fui chorando porque realmente tinha em Damião um colega, um companheiro. Com quem mais eu jogaria botão?
Terminou ali. Nunca mais vi Damião, nem a mãe, nem o pai, nem a irmã dele. Nem Felipe. Fui embora da Otávio Carneiro como se eu fosse o culpado. Enfim...
Por que contei tudo isso? Porque aquele gol que o Deivid perdeu foi muito parecido com o que Damião desperdiçou.
Deivid, Damião... Dois Ds, dois gols perdidos...
Incrível coincidência.
  

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