segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O ministério não é da ministra

Li a coluna de Reinaldo Azevedo sobre uma entrevista concedida pela hoje ministra Eleonora Menicucci, que estava (creio, o texto não esclarece) no site da Universidade Federal de Santa Catarina. Considero Reinaldo o mais brilhante cronista/articulista da imprensa brasileira atualmente. Tem um poder de argumentação de dar inveja a qualquer pessoa que admire um raciocínio elaborado. Dá gosto lê-lo, por mais que se disconcorde dele. E é sobre isso que pretendo falar: concordo, somente em parte, dá análise que Reinaldo faz das palavras da ministra.
Já aprendi que estar no governo, qualquer governo, é exatamente aquilo que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso certa vez disse: "Esqueçam tudo o que eu disse e escrevi". Do outro lado, na academia, se tem o mundo ideal, no qual os debates filosóficos e ideológicos se arrastam sem que ninguém convença ninguém. Há espaço para o contra e o a favor. Como disse Millor Fernandes, com sua inegável sabedoria de vida e com um brilho incomum de enxergar os fatos, "a teoria na prática é diferente".
Na época da entrevista, Eleonora era uma professora, uma militante, enfim uma pessoa que tinha compromisso somente consigo mesma e com os grupos nos quais atuava. A descrição que ela faz sobre o aprendizado do chamado "auto-aborto" é abjeta.
Diz ela com todas as letras que foi para a Colômbia aprender técnicas abortivas via sucção, que sem eufemismos quer dizer o seguinte: enfia-se uma espécie de aspirador de pó na vagina da paciente, liga-se o aparelho e o feto é sugado como lixo. Em suma, uma violência em todos os sentidos.
E quem escreve aqui é uma pessoa simpática ao aborto, desde que respeitados os preceitos da Medicina. A "técnica" descrita por Eleonora é, acima de tudo, uma brutalidade e uma estupidez.
Isso representa dizer que vem para o governo pronta para pôr em prática todas as ideias que aprendeu e acumulou nos anos de militância, política e social? Claro que não. Inegavelmente ela tem contribuições a dar, mas não será a ministra quem vai ditar os rumos do seu ministério. O rumo do ministério, de qualquer ministério, quem dá é o Palácio do Planalto. Vão dizer: se fosse assim, não tinha havido tantas falcatruas. O rumo é a parte visível; a invisível é sempre incontrolável, sobretudo à distância.
Não entro no mérito sobre se Eleonora é uma figura qualificada, "quadro técnico" como convencionaram chamar. Também não me importo que a hoje ministra militou na luta armada ou se foi para a cama com homens e mulheres, e homens e mulheres ao mesmo tempo. Acho essa uma bobagem moralista que pode não engrandecer a pessoa, mas nada acrescenta ao debate. A vida sexual é sempre relativa. Me incomodam muito mais as drogas e o alcoolismo. E olhe que eles são mais frequentes do que se imagina nos círculos de poder.
Considero Eleonora o retrato de uma época. Calculo que em muitas questões ela continua pensando exatamente como 40 anos atrás, mas em outras deve ter evoluído. Digo "deve" porque não posso garantir nada. Como as pessoas mudam de opinião e reveem posturas, deduzo que a ministra tenha passado pelo mesmo processo.
De qualquer forma, ela vem de um momento na vida do país em que aquilo que menos existia era bom-senso. A direita e a esquerda radicais se unem na boçalidade e na ausência de visão. Querem mudar o mundo a fórceps - e aqui não faço gracinha com a questão do aborto.
Eleonora deve ter passado o diabo na prisão. Difícil pedir moderação a uma pessoa que provavelmente foi estuprada. Quantas vezes? Sei lá. O estupro é uma arma psicológica das guerras. Aconteceu quando a Alemanha invadiu a Rússia, quando a Rússia tomou a Alemanha, quando os Estados Unidos devastaram o Vietnã, quando os sérvios atacaram a Bósnia. Nas ditaduras, a violência sexual contra homens e mulheres é uma das mais comuns torturas.
Quem sabe o que acontece no pau-de-arara admite que a masculinidade ou feminilidade são completamente destruídos. O que restava da integridade acaba ali. Ou já se esqueceram daquela cena do Tropa de Elite I, quando o Capitão Nascimento (esse herói vingador do imaginário popular nacional) manda um dos seus soldados trazer um cabo de vassoura para empalar um traficante? A simples ameaça de ter algo a entrar-lhe pelo ânus faz com que o bandido confesse onde está escondido o traficante Baiano.
Ninguém que passa pela barbárie sai melhor, mais humano. Sai certo de que seus preceitos políticos, suas base ideológicas, estão rigorosamente corretas. Se a reação do Estado é devastadora, sinal de que a ideia que seus adversários pretendem transmitir é perigosa, revolucionária, transformadora.
A ditadura militar brasileira (assim como qualquer ditadura) apenas deu razão àqueles que lutaram contra ela. Da mesma maneira que a invasão do Iraque ou do Afeganistão somente alimentou o radicalismo islâmico.
A ministra já foi cobrada sobre seu passado. Não deu a melhor resposta em relação a questão do aborto, mas muita da histeria moralista que se viu de alguns setores era de encomenda. Algumas das figuras que se manifestaram contra ela não têm sequer envergadura moral para criticá-la, pelo tanto de dinheiro público que são acusadas de malversar. 
Eleonora não precisa da minha defesa, tampouco concordo com sua postura de vida, seja ideológica ou sexual. Me considero um conservador, mas acho graça dos ataques que ela recebeu, todos voltados para questões de pouquíssima importância para a vida do brasileiro. Se houver um enquete verdadeira, sem pressões dogmáticas ou sociais, verão que muito mais pessoas do que imaginam são favoráveis ao aborto.
No momento em que regularizarem (e isso jamais será feito) a prática e garantirem que para a retirada do feto o processo seja de acordo com o que manda os manuais de Medicina, não tenho a menor dúvida que os números explodirão. E com isso virá outra constatação: a de que educação sexual do brasileiro é precária. Afinal, privilegia-se o prazer na relação sem se importar com consequências e sequelas.
A entrevista de Eleonora à UFSC é infeliz sob todos os aspectos. Demonstra uma conduta nos relacionamentos que para muitos pode ser considerada promíscua. É equivocada, sobretudo, no que tange ao aborto, quando defende um método calhorda e machista - embora a hoje ministra não admita isso. Mas isso não representa que ela vá ditar as regras do ministério que ocupa, formado sobretudo por uma equipe de técnicos que impedem que se sucumba a desvios ideológicos.
Fosse assim, cada um faria o que quer e bem entende. E você sabe perfeitamente, Reinaldo (a quem profundamente admiro, faço questão de ressalvar e ressaltar), que não é assim.

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