segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Para quem dignificou a vida

Passei o domingo lendo sobre as homenagens a Rodolfo Fernandes. Todas absolutamente justas, embora eu não o tenha conhecido. Por relatos de interpostas pessoas, tratava-se de um profissional de primeira linha, de trato fácil e tranquilo. O contrário de seu pai e de seu irmão, com os quais convivi durante nada menos que 15 anos.
Fui para a Tribuna da Imprensa exatamente em agosto de 1990. Tinha acabado de passar cinco meses desempregado, demitido que fora de O Globo. Nessa época, pelo que pude ler, Rodolfo já era uma das jovens estrelas do jornalismo. Somos quase contemporâneos, pois sou somente um ano mais novo do que ele era.
Vendo hoje a cobertura do sepultamento de Rodolfo, revi Helio Fernandes depois de quatro anos. Exceto pelo cabelo longo, talvez devido ao sofrimento por acompanhar o filho definhar, me pareceu o mesmo.
Em março de 2007, despediu-se de mim friamente, estendendo a mão mole, daqueles que, com nojo, cumprimentam por pura formalidade. Eu acabara de me demitir para tentar uma retomada profissional em Brasília, atendendo a chamado de um grande amigo, Jorge Eduardo Antunes.
Helio entrara minutos antes na redação como um foguete, sem olhar para os lados, indo se instalar numa sala vazia contígua a que fora minha. Sempre que surgia assim, o código era tácito: eu deveria me encontrar com ele. Os olhos frios, de desprezo, apenas emulduravam uma conversa que era sempre tensa.
A Tribuna era o pior dos infernos profissionais: meses de salários atrasados, direitos trabalhistas ignorados, pessoas maltratadas, humilhações diárias. Helio não tinha medo de enfrentar seus poucos funcionários, que também tinham perdido o respeito por ele. O mais indiferente ao velho jornalista lhe devotava um profundo ódio.
Perguntou-me se eu deixara a coluna do dia seguinte. Disse-lhe, timidamente, que não. Que eu me demitira na sexta-feira anterior, que ali estava somente para cumprir algumas formalidades e me despedir de quem gostava. Também angariei muita inimizade. Afinal, estava entre os funcionários - que legitimanente queriam seus direitos - e Helio, que exigia que as pessoas trabalhassem gratuitamente.
Foi quando ele me estendeu a mão macilenta, virou as coisas e deixou a sala. Foi fazer a coluna da página 2, o Fato do Dia, que durante alguns anos fiz sem cobrar ou receber coisa alguma. Fiz pressionado pelos bilhetes humilhantes que escrevia para seu filho mais velho, Helio Fernandes Filho, e para o diretor de redação, Carlos Newton Azevedo. Poderia ter me demitido, claro, mas com uma mulher e uma filha, se tolera mais ofensas do que se imagina. Não foram poucas as minhas tentativa de deixar a Tribuna.
Aquele homem de "imensa coragem", como imaginam vários dos seus leitores, queria que eu enfrentasse o filho e meu superior. Aliás, foram várias as vezes que Helio achou que tanto eu quanto Carlinhos estávamos por trás dos movimentos grevistas dos funcionários. E, por causa disso, pagava (com atraso) a todos, menos nós. O meu era mais atrasado que o atrasado.
Helio, porém, me contou excelentes histórias, nos poucos contatos que não eram desgastantes e difíceis. A maioria guardo como recordação de um homem que não tinha enlouquecido, não tinha se transformara num miserável. Reproduzo-as sempre que posso, bem como as expressões brilhantes que cunhou.
Nessa convivência conflituosa, lembro-me que, anos antes, Helio se solidarizara comigo quando da morte da minha filha, poucos dias depois do parto. Eu estava um caco, como creio que ele hoje esteja com a partida de Rodolfo. Mas me lembro de suas palavras, um consolo estranho, mas extrememente verdadeiro.
- Fabio, não sei o que é pior: perder um filho tal como você ou perder os pais como eu.
Entendi o que ele queria dizer, já que, várias vezes, relatara que o pai morrera quando ele e os irmãos (além de Millôr, tem duas irmãs, Ruth e Judith) eram pequenos. Logo em seguida foi a vez da mãe. Se minha memória não falha, cresceu criado por um tio, irmão da mãe, que era gráfico e levou ele e Millôr para o universo dos jornais.
Esse homem, aos 90 anos, sepultou um filho. A ordem natural da vida foi invertida. Às vezes imagino as razões para se viver tanto, os motivos dessa longevidade que não sei se é desejada. Para quê? Para ver um filho desaparecer? Para ver dois filhos desaparecerem? A gente vive, mas não quer presenciar tais partidas.
Não me uno a Helio e sua família porque somos pais ou porque o drama de Rodolfo poderia ter sido o meu. Me uno àqueles que tenham dignificado a vida. Creio tenha sido assim com Rodolfo - e tudo indica que foi, por aquilo que escutei falar.
Mas lamento dizer que a de Helio não foi assim.

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