terça-feira, 6 de março de 2012

Erro de Valcke é o delírio da superioridade

O governo tornou-se mais mau-humorado? Menos tolerante? Pode ser, mas é uma postura bem vinda. Ainda que o general Charles de Gaulle sempre tenha negado ter dito que "o Brasil não é um país sério", a pecha ficou. Não faltaram presidentes, governadores, prefeitos, legisladores e juízes a confirmar nossa suposta alma galhofeira. O poder pátrio abrigou figuras desrespeitosas, que pela ineficiência das nossas instituições passaram à história como representantes dessa imensa comédia nacional que em nada nos engrandece.
Depois de bater de frente com os militares da reserva (vejam meu post anterior, no qual endosso praticamente tudo o que foi dito pelo historiador Carlos Fico, em matéria no Globo de hoje, embora eu tivesse me manifestado antes), o governo também resolveu colocar o secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, no seu devido lugar. E com absoluta razão. O cartola francês sofre do devaneio da superioridade e se apropriou do discurso que o ex-presidente do seu país sempre negou que proferira, na década de 60.
A Fifa não é uma instituição séria, pelo menos quando se dá ao adjetivo "seriedade" o mesmo significado de lisura, honestidade, transparência, retidão e correção. A Fifa não é nada disso. É corrupta e corruptora. João Havelange não a tornou maior do que a própria ONU em número de filiados, não teria estendido o braço da entidade aos quatro cantos do mundo, se não tivesse sido generoso. Joseph Blatter, sua cria e continuador (embora hoje estejam em lados opostos), prosseguiu e aprofundou o legado do mestre.
Valcke fala, Aldo escuta: cena que não se verá novamente
Quando o Brasil foi escolhido para sediar a Copa de 2014, a Fifa recebeu um relatório sobre todos os cenários possíveis. Inclusive um de que poderia dar tudo errado e ser obrigada a levar o Mundial, em cima da hora, para outro país (por isso é que há uma espécie de data-limite, em 7 de junho de 2012, para a confirmação do evento; dependendo do andar da carruagem, a entidade pode transferir a Copa para outro país caso o risco de não sair ultrapasse os 50%).
Uma instituição como a Fifa não dá passos errados: recebe panoramas profundos sobre a situação política, social, econômica e jurídica de cada nação-sede. Trata-se de um evento grande demais, rico demais. Não pode correr risco algum de não existir.
A Fifa, portanto, conhece bem o Brasil. Sabe do funcionamento das nossas instituições. Tem consciência do movimento de forças no Congresso. Sempre foi cientificada da ingerência do poder de negociação do Palácio do Planalto. Identifica interlocutores e escolhe os mais confiáveis, aqueles com os quais deve negociar.
Não foi enganada: sabia que a Lei Geral da Copa fere vários dispositivos da legislação brasileira, seja federal ou estadual. Tinha certeza de que sua tramitação no Congresso seria difícil, pelo tanto de defesa dos interesses da entidade que traz no bojo. Ninguém nessa história é trouxa.
Valcke, porém, tem o dom da inabilidade própria daqueles que estão acostumados a negociações fáceis, a ordens cumpridas. Cometeu o erro de achar que as coisas deslanchariam aqui tal como foram na África do Sul.
Na Copa anterior, foram vários os dispositivos favoráveis à Fifa que o país engoliu sem pensar duas vezes, inclusive uma espécie de tribunal de exceção. Os sul-africanos estavam diante de uma primazia e um privilégio: serem os primeiros a sediaerem um Mundial no continente; e mostrarem-se como ambiente proprício aos negócios numa região marcada por instabilidade política, insegurança jurídica, miséria e violência. Assim, ou aceitavam ou viam a chance de darem um salto econômico lhes escapar.
O Brasil é bem mais complexo. Traz o pior do Terceiro Mundo e o melhor do Primeiro. Valcke acreditava que podia rugir que haveria uma tremedeira geral, que a LGC seria aprovada a toque de caixa. Exagerou na dose e acreditou estar falando com aquele mesmo governo que, pouco mais de um ano atrás, levava tudo na risada e na leveza. Dilma é Lula são muitíssimo diferentes. E os ministros, como não poderia deixar de ser, assumem a personalidade de quem está no topo da pirâmide. 
Ao dizer que no Brasil as coisas só andam com "chutes na bunda", o secretário-geral assumiu a face do colonialismo que permeia as ações da Fifa. Valcke representa o "reaciocínio" (mistura de reacionarismo com raciocínio) de uma entidade que se considera acima das nações. Não é por acaso que pretende impor ao Brasil o mesmo tribunal de exceção que houve na África do Sul e sugere que o país arque com os danos de desastres e imprevistos que afetem os patrocinadores da Copa. 
A Fifa não nos faz favor algum. É um casamento de conveniência. O Brasil é a nação que mais tem merecido adulação de investidores, que nos enxergam como imunes à crise internacional e como saída para a manutenção dos lucros. O tom desrespeitoso, arrogante, de Valcke registra uma alma preconceituosa, que acredita estar dando a nós, pobres nativos de Pindorama, um benefício divino.
Não é mais assim, "doutor". Se a Fifa nos cobra seriedade, é preciso que seja séria também. Começando por abolir o linguajar próprio da sarjeta.   

Nenhum comentário:

Postar um comentário