quinta-feira, 1 de março de 2012

Quem ganha a queda de braço?

Discordar de um jornalista brilhante como Reynaldo Azevedo é dose para cavalo. Seu poder de argumentação é estrondoso, de causar inveja. Tem uma capacidade e uma cultura que chegam a ser humilhantes. Mas, mesmo assim, acho que dessa vez sua irritação e indignação com o governo Dilma ultrapassaram as fronteiras do bom-senso. Claro que Reynaldo forra sua análise com carradas de informações, o que leva qualquer um a acompanhá-lo na aventura do raciocínio. Só que, apesar disso, há que se dar uma pausa para pensar.
Dilma segundo Romero Brito
Não gosto do fraseado intermitente das ministras Maria do Rosário e Eleonora Menigucci. Porém, admito que a responsável pela pasta dos Direitos Humanos não queira jogar cal sobre as feridas da ditadura militar. Da mesma maneira que a hoje secretária das Mulheres não pode esquecer que comeu o pão que o diabo amassou quando caiu nas mãos dos agentes da ditadura.
Rosário, embora representante do governo, tem todo direito que querer que se investigue o passado, apesar de o Supremo ter deixado claro que a lei não retorage para restringir (princípio, aliás, básico do Direito). Existe um grupo de pessoas que quer saber da sua posição e, sobretudo, conta com ela para que a barbárie não seja esquecida.
Sobre Eleonora, o fato de ter sido militante não quer dizer que ela quisesse uma ditadura de esquerda no Brasil. Era, sim, ligada a um partido radical, maoísta, stalinista ou qualquer porcaria assim. Mas como não chegou ao poder (foi esmagado antes), Reynaldo não pode afirmar que sairiamos de um regime de força para cair em outro. Essa possibilidade a história negou ao Brasil.
Eleonora admitiu imensas imbecilidades, como aquela do auto-aborto, que foi "aprender" na Colômbia. Isso Reynaldo lembrou. Só que não representa que a secretária das Mulheres vá assumir um cargo no governo impondo concepções particulares.
Não foi somente ela que defendeu posições diametralmente opostas quando estava fora do governo. Fernando Henrique Cardoso rasgou o verbo: "Esqueçam tudo que eu disse". Ou seja, uma coisa é ser sociólogo, responsável pelas suas próprias teorias, outra é ser presidente, impedido naturalmente de sair defendendo qualquer tese.
Fiz essa longa introdução para mostrar que se um lado quer se manifestar, outro também pode. Da mesma forma que Rosário e Eleonora falam para seus públicos, os clubes militares falam para os deles. A reserva das Forças Armadas pretende que as torturas da ditadura caiam no esquecimento, nem que seja à força. Defendem a Lei da Anistia, que inegavelmente favoreceu os agentes criminosos do Estado e deu-lhes proteção eterna. Não podem ser alcançados, apesar dos estrilos das duas ministras.
O que as duas fazem é justamente isso: estrilar. Mais nada. Não deram um único passo no sentido de ferir o que está previsto na lei. Porém, o entendimento, dos militares, é ferrabrás. Com uma truculência própria de quem ainda não superou as marcas deixadas pela história, os clubes elevaram o tom, em afronta. E sabiam que ergueriam uma voz que não é somente a deles, mas de toda uma categoria. Nesse ponto, Rosário e Eleonora estão em franca desvantagem: falam somente por si mesmas e por um contingente bem menor que o das Forças Armadas.
O problema dos clubes é que verbalizam aquilo que a ativa militar não pode nem deve fazer. Representam o pensamento da caserna. Daí o status de sublevação que o governo está dando. Já disse aqui que Dilma tem desprezo pelos homens de farda, assim como Celso Amorim não é conselheiro para coisa alguma.
A polêmica teria terminado se os clubes tivessem botado a viola no saco.  Mesmo com a carta tendo sido retirada do ar, teriam dado o recado. Ficava o registro do pensamento divergente, do incômodo com as posturas das duas ministras. Nisso, viria embutido o aconselhamento ao Palácio do Planalto de que procurasse conter os arroubos opinativos de ambas.
Em vez disso, os clubes decidiram bater de frente. E quem insiste, provoca. Quem provoca, nesse caso, se insubordina. Isso ninguém pode admitir. Não será Dilma que o fará.
Reynaldo lembra que os presidentes anteriores cozinharam os militares em banho-maria. Verdade, mas todos por razões diferentes: Sarney e Itamar porque termiam a ameaça (superestimada) de que a caserna resolvesse novamente tomar o país nas mãos, como santa salvadora; FHC porque, espertamente, criou o Ministério da Defesa e cassou a possibilidade de os militares articularem e se articularem politicamente; e Lula porque tinha de lidar com um rol de insatisfações, que vão desde os baixos soldos ao desaparelhamento das Forças - isso não o impediu de tratar com mão de ferro o episódio do apagão aéreo.
Eu acreditava que, da parte de Dilma, haveria somente mais habilidade no tratamento da questão; que alguém conseguiria tirar-lhe o gosto de bile da boca. Errei, pois Amorim ajudou-a a levar o caso na ponta da faca. O grande equívoco está aí, na falta de habilidade ao conduzir uma questão que pode se avolumar.
Sobre o enquadramento dos militares, a meu conceito a presidente está rigorosamente certa: não se pode permitir que uma ordem seja descumprida. E exatamente por aqueles que se dizem guardiães da disciplina.
A temperatura da crise é alta. Os dois lados não fazem qualquer menção de um movimento de recuo. Os comandantes das três Forças serão chamados a intervir e a eles será lembrado que o governo tem assuntos pendentes, que dizem diretamente às fardas - como reaparelhamento da tropa e melhorias nas condições salariais são somente dois deles. E que podem escolher se tais questões sobrem ou descem a fila de prioridades.
Vai rolar a bola para os militares mostrando que, em matéria de atendimento às pretensões deles, o que é ruim pode ficar pior. Junto virá uma repreensão, que será engolida pelos clubes em posição de sentido. Pagarão pelo desassombro, pela insubordinação.

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