terça-feira, 19 de julho de 2011

Irmãos siameses

Acabo de ler um artigo de Larry Flint, na página d’O Estado de São Paulo, condenando a postura de Rupert Murdoch, que alavancou algumas das suas empresas à base de manobras que nada têm a ver com a ética. Muito ao contrário: ultrapassam a medida daquilo que é moral e decente e entram na seara criminosa, violando a individualidade dos cidadãos. Para Murdoch, um predador da imprensa, a notícia poderia ser obtida pelos mais variados meios, inclusive os ilegais. O leitor de hoje pode ser a matéria de amanhã, segundo os ditames do The Sun e do extinto News of the World.
O problema é que acho que algumas pessoas não têm envergadura moral para falar de outras. Uma delas é exatamente Larry Flint. Não, não estou aqui defendendo a censura, tampouco passando para o lado daqueles pastores televisivos de caráter duvidoso que ele enfrentou na década de 70. O povo contra Larry Flin”, brilhante filme de Milos Forman, nos faz pensar, sim, na liberdade de expressão e de opinião, da mesma maneira como faz pensar naquilo que Larry fazia e que virou decisão pacificada pela Suprema Corte dos Estados Unidos.
Definitivamente, o que a Hustler é ou foi está longe de ser imprensa. Quando Flint desencadeou a ira dos pastores pilantras foi porque os estampou na sua revista, chamando-os de tarados edipianos, sem qualquer base para isso. Ainda que eles fossem safados, amorais, se você não tem provas contra a pessoa, a regra da imprensa manda apurar primeiro e publicar depois. Se ainda assim as informações não se consolidarem, recua-se na matéria.
No filme, a Suprema Corte defendeu o direito de Flint de ridicularizar, que, ainda que não concordemos plenamente, é uma forma de expressar opinião. Lembro de um episódio no mínimo bisonho, acontecido não tão longe assim: o processo do ex-governador do Estado do Rio, o advogado criminalista Nilo Batista, contra o “colunista” Agamenon Mendes Pedreira. Nilo ficou em má situação duas vezes: primeiro, porque Agamenon o ridicularizou na sua “coluna”; e segundo porque Agamenon simplesmente não existe. É uma criação magistral da turma do Casseta & Planeta.
Nossos códigos não permitem a ridicularização, a humilhação. Quem tem o hábito de assistir ao programa de David Letterman surpreende-se com as piadas de mau gosto e os ataques que comete contra os presidentes norte-americanos. George W. Bush, não sem razão, foi uma vítima constante de suas críticas ferozes, que incluía chamá-lo de bêbado e de débil-mental. Está lá a Primeira Emenda à constituição que não permite que se admoeste quem é duramente agredido pelas palavras.
Flint foi até o final para defender seu direito de criticar, mas isso não lhe dá o direito de condenar ninguém. Primeiro, porque ele não faz jornalismo. Trata-se de um empresário do ramo da pornografia, com canais pagos e produtoras de filmes de sexo explícito. A Hustler é somente uma das faces desse lucrativo ramo de atividade e, talvez, o mais ingênuo dele. A exploração de homens e mulheres, da prostituição glamurizada, fica para os veículos de vídeo, que eufemisticamente são tratados como entretenimento adulto. Flint foi onde Hugh Hefner não teve coragem de ir.
Ninguém nega que os métodos de Murdoch são, desde muito cedo, os piores possíveis. Diz-se que começaram a se manifestar quando assumiu o comando do seu primeiro jornal, ainda na Austrália. Reza a lenda que, ao ficar à frente da publicação, reuniu toda a redação logo no primeiro dia e prometeu não demitir ninguém, mesmo que os objetivos traçados fossem atingidos. Os jornalistas, claro, acreditaram e, aos poucos, Murdoch foi substituindo um a um, traindo a confiança deles.
Dali para diante, o céu foi o limite para Murdoch. Fez fusões e aquisições de maneira irresistível e construiu o maior império da mídia mundial. E em algumas das suas publicações deixou claro que a ética não entrava na lista das cinco maiores prioridades. O The Sun tornou-se um espaço odiado por todo mundo, já que trazia à tona apenas as indiscrições das celebridades. O News of the World enveredou por caminho ainda pior, trazendo para o público casos de grande impacto, mas que envolvessem gente comum. Era o caso de seqüestro não resolvido, de pedofilia descoberto e coisas do mundo-cão. Murdoch espetacularizou a miséria utilizando os meios mais sujos, com conexões do submundo, ainda que viessem travestidos de policiais.
Flint fez a conexão da nudez com a pornografia. Não que isso fosse incomum nos Estados Unidos, mas ele pegou a base da Playboy, com algum conteúdo jornalístico, para dar a roupagem na vulgarização dos corpos femininos, com fotos mais ousadas do que a medida da época. No seu rastro veio Bob Guccione, aquele que pegou um roteiro fraco de Gore Vidal, atores e atrizes de primeira linha (John Gielgud, Peter O’Toole, Malcom McDowell e Helen Mirren), um diretor de filmes eróticos (Tinto Brass) e fez um filme pornô com roupagem de cinema de arte. Isso não o tornou um produtor de sucesso, tampouco fez da sua Penthouse uma revista respeitada.
Nesse jogo de amoralidades, nem Flint pode condenar Murdoch nem Murdoch atacar Flint. Eles são rigorosamente iguais, embora por correntes diferentes: os dois pensam que fazem jornalismo.

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